quinta-feira, 16 de novembro de 2017

ISTO de Fernando Pessoa





ISTO
(uma leitura)

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.




Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.


Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!



“Isto”
António Borregana:
a)  “Parece que é uma resposta a supostas críticas nascidas de possíveis interpretações de “Autopsicografia”. Assim e tal como no poema anterior, temos a teoria poética do fingimento.
b)  “Em “Autopsicografia”, o poeta fala na terceira pessoa, dando a entender que a teoria exposta tem aplicação universal (…) No poema “Isto”, o poeta fala na primeira pessoa.”
c)  3 momentos, 3 estrofes; 1ª est. – tese do poeta: não usa o coração, sente com a imaginação e não mente. Máxima de Álvaro de Campos “Fingir é conhecer-se”; 2ª est. – desenvolvimento e fundamentação filosófica da necessidade de usar a imaginação: o poeta pretende ultrapassar o que lhe “falha ou finda”  e contemplar “outra coisa”; 3ª est. – “Por isso” se liberta do que “está ao pé”  que é a verdade para aqueles que dizem que finge ou mente tudo o que escreve, em busca daquilo que é verdadeiro e belo, “a coisa linda”.  
d)  O que é lindo é o poema que resulta da transfiguração, do fingimento da dor sentida através da inteligência, da imaginação. Para Pessoa, a perfeição está no mundo intelectual e não no mundo sensível.
e)   “Tudo o que sonho ou passo (= fatalidade, destino), / O que me falha ou finda (= eventualidades da vida) / É como que um terraço / Sobre outra coisa ainda. / Essa coisa é que é linda.”; (de salientar que nenhum dos verbos sublinhados é ativo, sugerindo o poeta como destinatário  e não como sujeito destas ações). “É evidente que paira aqui a doutrina platónica (…): olhar para as aparências (as coisas do mundo) e ver imediatamente as realidades puras de um mundo mais alto.”
     Só o poeta pode contemplar essa coisa tapada pelo terraço do sonho, da dor, da frustração, porque se consegue  libertar do enleio do mundo e escrever usando a imaginação/razão, em busca do que é e apenas seguro (“sério”) “do que não é”.

f)   O que está ao pé são as sensações, é o mundo das aparências; o “que não está ao pé” é o mundo da inteligência, o mundo das realidades puras, da imaginação que transforma, que eleva as sensações ao nível da literatura, ao nível da poesia. A arte poética nasce da abstração do mundo sensível. Só quando o poeta é “livre do seu enleio” (do mundo sensível, do coração) é que pode dar-se o milagre da poesia.”
g)  A interrogação final, “em conjunto com a exclamação “Sinta quem lê!” é uma resposta irónica ao (…) princípio do poema. O poeta não sente, deixa isso para os que leem, para quem não é poeta.”

î Distinção entre a utilização do verbo sentir na 1ª e última estrofe, respetivamente: 
- na 1ª estrofe, “sinto” refere-se à emoção intelectual e não às sensações;
- na última estrofe, “Sentir” e “Sinta” referem-se às sensações, próprias das pessoas que dizem que ele finge ou mente.

îî … e ainda:



- trata-se de um texto de índole teórica sobre a criação poética por isso não é de estranhar a predominância de substantivos e de verbos (Pres. Indicativo).







AUTOPSICOGRAFIA, Fernando Pessoa



AUTOPSICOGRAFIA


(uma leitura)



O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda 
Que se chama coração

                                                                             Fernando Pessoa



 “Autopsicografia” – descrição da alma ou das suas faculdades

a)  Poema que apresenta a teoria-base da estética pessoana, definindo claramente os lugares do coração (sentimento) e da inteligência na criação poética.
b)  1ª estrofe, 1º verso é a síntese do pensamento implícito no conjunto do poema. Na 1ª quadra está expresso o ponto de partida para  a criação poética: o reconhecimento da dor ou experiência emocional. Esta, no entanto, não deve aparecer na sua poesia; esta dor sentida deve ser materializada e não deve aparecer da forma espontânea com que surgiu.
c)  “A dor sentida é a realidade, o seu fingimento é a literatura.”; “O real é imaginado de forma a exprimir-se artisticamente.”; “O fingimento da realidade já supõe que há duas coisas distintas.” (António José Saraiva in Ser ou Não Ser Arte)
d)  São três as fases do processo poético/literário:
·      Primeira: sentir, conhecer-se, analisar-se;
·      Segunda: conceber a ideia do fingimento desse sentir;
·      Terceira: torná-la em objeto - poema.
e)  Quatro dores:
·      a dor real do poeta; (a que ele sente ou 1)
·      a dor fingida / imaginada; (a que o poeta transfigura, intelectualiza e que é a sentida ou 2)
·      a dor lida; (o poeta escreve essa dor 2, tornando-a num poema)
·      a dor real do leitor (a que é despertada no leitor pela leitura do poema e que passa assim a dor sentida pelo mesmo. No último verso: os leitores só têm acesso à representação da dor intelectualizada que não lhes pertence.)
f)   Distinção entre o Eu (definido) o que faço, escrevo, sinto com a imaginação e os Outros (indefinido) o que dizem, sentem, leem, sentem com o coração.
g)  “Para o poeta a dor fingida nasce da dor sentida; para o leitor a dor sentida nasce da dor lida.”; “O leitor sente uma dor que não é a sua.”; “A arte nasce da realidade, desprende-se da realidade e renasce na realidade.” (António José Saraiva in Ser ou Não Ser Arte)
h)  calhas de roda - rumo marcado pelo destino (= roda da vida); mundo das convenções cujas calhas simbolizam a fixidez e a impossibilidade de mudança de rumo.
razão - imaginação onde o poema é inventado (dor fingida);
comboio de corda = coração; função lúdica da poesia;
coração - sensibilidade que origina o poema (dor real) mas que é um entretenimento da razão.

i o título do poema pode levar-nos à conclusão de que o poeta quer explicar o processo psíquico que nele se passa, ao elaborar um texto poético. O poeta faz um estudo do fenómeno que nele ocorre no ato da criação artística.

ii De notar a ligação entre as três estrofes através da coordenativa “e” e que sugere a divisão em três partes lógicas a qual, por sua vez, aponta para uma sequência igualmente lógica, no desenvolvimento do assunto. De referir que a última estrofe funciona como uma conclusão do anteriormente exposto, introduzida pela expressão “E assim…”.

ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA - Análise do texto








A sinceridade e o fingimento
Pessoa trouxe à poesia portuguesa a dialética, como movimento pela unidade dos opostos, da sinceridade-fingimento, ligando-a estreitamente aliás à da consciência-inconsciência e à do sentir-pensar. (…) Regressando ao caminho que leva à teoria do fingimento, parece-nos dever-se distinguir entre os traços precursores apontados, a autoexplicação “patológica” do fenómeno da heteronímia, por um lado, e o modo como ele efetivamente se processa em Pessoa. (…) Sim, Pessoa ganhou consciência de que “o poeta é fingidor”; a própria aptidão de exprimir “a dor que deveras sente” só se torna possível graças a uma esmerada arte de fingimento, conforme assevera a quadra inicial da “Autopsicografia”. (…)
Óscar Lopes, Lit. Port.- III – Época Contemporânea,
História Ilustrada das Grandes Literaturas, Estúdios Cor, Lisboa, 1973

Ela canta, pobre ceifeira

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

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Temática abordada: a Dor de Pensar  (pensar faz sofrer).
Dialética subjacente: conflito = sentir/pensar; consciência / inconsciência.

Trata-se de um poema ainda um pouco ligado ao intersecionismo.
Este texto exemplifica o conflito entre o sentir e o pensar, ou entre a ambição da felicidade pura e a frustração que a consciência-de-si implica.
Podemos considerar dois momentos neste texto: o primeiro constituído pelas três primeiras quadras e o segundo pelas três restantes.
Nas três primeiras quadras a focalização incide sobre a ceifeira, objeto de análise do poeta, ceifeira que “Canta, e ceifa,”.
A voz da ceifeira desperta no sujeito poético sentimentos contraditórios – “Ouvi-la alegra e entristece” – que remetem para o contraste existente entre a vida pobre e dura que a mesma tem e o canto que parece alegre – “Julgando-se feliz talvez,”;  “E canta como se tivesse / Mais razões p’ra cantar que a vida”. Assim, na sua descrição da ceifeira, o sujeito poético aponta para um canto instintivamente alegre. Esta descrição seria objetiva se o s.p. não introduzisse a sua perspetiva; a subjetividade vai adensar-se de seguida, ao longo do segundo momento.
Nesta primeira parte ou momento predomina o tempo verbal Presente bem como um tipo de pontuação mais lógica, “linear”, “suave” próprias da descrição. O Presente atribui um caráter mais durativo à “ação” uma vez que projeta a voz doce da ceifeira, fazendo-a deslizar suavemente pela imaginação do poeta que nela medita.
A sugestão da lenta passagem do tempo é dada pela forma perifrástica e pelo gerúndio: “a cantar”, “está pensando”, “ondeando” e “levando-me”.
Podemos concluir que, se atendermos às razões da ceifeira, o seu canto alegra; se a virmos na perspetiva total do poeta, entristece.
O segundo momento deste poema é constituído pelas três últimas quadras o qual se encontra marcado por uma muito maior subjetividade.
Nele, o sujeito de enunciação exprime a sua emoção perante a canção inconsciente / alegre da ceifeira, tecendo considerações sobre a simplicidade da ceifeira, e, sobretudo, sobre si próprio, o que muito contribui para essa mesma subjetividade pois o objeto de análise é agora o s.p. por oposição à simplicidade da ceifeira.
Alguns aspetos a considerar: o tom é diferente; o eu poético aproxima-se da ceifeira nesse tratamento por “tu” e a pontuação passa de linear ou lógica a emotiva o que se verifica na utilização de pontos de exclamação quando o s.p. se dirige diretamente aos elementos da natureza e no emprego da forma verbal do Imperativo - “Ah, canta, canta sem razão!”; “Ah, poder ser tu, sendo eu!”; “Ó céu! / Ó campo! / Ó canção!”.
Esta segunda parte pode ser ainda dividida em dois momentos:
1º - o s.p. lança um apelo (função apelativa da linguagem) à ceifeira para que continue a cantar a sua canção inconsciente  e para que derrame “no [seu] coração”, vv.15 / 16, porque a emoção que experimentou obrigou-o a pensar e a desejar ser ela sem deixar de ser ele, tendo a sua “alegre inconsciência / E a consciência disso…”.
Deste modo, o s.p. aspira ao impossível pois ter consciência da inconsciência é deixar de ser inconsciente. Ele tem consciência desta impossibilidade e por isso apela ao céu, ao campo e à canção, personificados =conduz= “dor de pensar”.
2º - última quadra, culminar de todo o processo que leva o s.p. a desejar a dispersão, o aniquilamento.
Tendo sido um dos poetas que mais se serviu da inteligência, Pessoa sempre se sentiu torturado por ser um ser pensante. Por isso aspira à inconsciência da ceifeira quando ouve a sua “incerta voz” (alegre e triste): “Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso! …”. Deste modo, o s.p. reflete sobre a intelectualização do sentir, “O que em mim sente ‘stá pensando.”; sobre a “dor de pensar”, “A ciência / Pesa tanto e a vida é tão breve!”, desejando a inconsciência, “Tornai / Minha alma a vossa sombra leve! / Depois, levando-me, passai!” (tal como a voz da ceifeira que se espalha no ar).
A temática da fragmentação do “eu” é evidente, remetendo para a criação dos heterónimos:
“Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso!”
É algo sem solução, este problema de querer ser tu e permanecer eu e ser consciente do inconsciente; ser e não ser, consciência / inconsciência - (paradoxo).
Mesmo a própria ciência (pensamento) é fonte de sofrimento – “dor de pensar” – e até mesmo o pensamento é causa de sofrimento, v.14; por isso, o poema culmina na última quadra, como já foi referido, na expressão de um desejo que conduza a um fim uma vez que, em situação alguma, se consegue evitar o sofrimento.

**  O pensamento racional está na origem do ser incapaz de verdadeiramente sentir, sensitivamente, instintivamente, como quem descobre o mundo sem preconceitos, sem nada dele saber – “A ciência / Pesa tanto e a vida é tão breve!” – constatação amarga, reforço à dor de pensar, à lucidez.
***  Recursos estilísticos:
 Antítese – versos 4, 9, 18-19;
Dupla adjetivação – verso 4;
Comparação – versos 5, 6;
Invocação – versos 13, 15 e seguintes;
Metáfora – versos 5, 7, 15, 16;
Exclamações e verbos no imperativo – versos 13, 15-16 e seguintes;
Aspeto formal: poema composto por seis quadras em versos octossílabos. O esquema rimático de todas as quadras é ABAB e a rima é cruzada.










FERNANDO PESSOA E HETERONÍMIA - APONTAMENTOS / NOTAS SOLTAS

            TEXTO INICIAL…
A melhor proposta para a explicação da heteronímia é-nos dada pelo próprio F. Pessoa quando escreveu “o ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro – eis tudo.”
Na verdade, o poeta tem a capacidade de ”voar outro”, ou seja, é capaz de construir pessoas inexistentes que sentem, como as pessoas reais, sensações e emoções ainda que diferentes das do seu criador. Este processo assemelha-se ao do ator quando representa as suas personagens, estando na sua origem a capacidade de se despersonalizar.
Pessoa transforma esta despersonalização dramática num modo de criação literária muito bem conseguido, em que cada personagem difere do seu criador, representando uma espécie de drama. Quando estão juntas, estas personagens formam um outro tipo de drama: o drama em gente.

NOTAS SOLTAS…
            É o profundo autoconhecimento de Pessoa que o leva a desejar ser outro, “Ser outro constantemente” revelando o “eu” fragmentado e revelando o drama de personalidade que o leva à dispersão do real e de si mesmo.
            O poeta possui uma grande capacidade de despersonalização “Quantos sou?” e é na heteronímia – cria diferentes personalidades – que Pessoa encontra a possibilidade de exprimir estados de alma e consciência distintos.
            Este processo de despersonalização faz dele um ser plural, em que pensar e sentir se harmonizam e assim melhor expressarem a apreensão da vida, do ser e do mundo, permitindo “sentir tudo de todas as maneiras”.
“’Por a alma não ter raízes’, Fernando Pessoa  pretende “viajar” no seu próprio ser, submetendo-se ao processo de outração, de modo a experienciar todas as possibilidades do “eu”. Indivíduo singular, Pessoa apresenta-se “múltiplo”, querendo exprimir o todo e abarcar a totalidade. É a fragmentação que lhe permite, então, ser “variamente outro” e alcançar a unidade.”
A fragmentação do “eu” pessoano resulta da constante procura de respostas para o enigma do ser, aliada à perda de identidade.
Pessoa vê-se confrontado com a sua pluralidade, ou seja, com diferentes “eu”, sem saber quem é nem se realmente existe. O “eu” nega-se como um todo.
Refere o “eu” lírico “Multipliquei-me, para me sentir”, encontrando, assim, a salvação na fragmentação, na vida inventada, em que cada um dos seus heterónimos exprime um novo modo de ser e uma visão própria do mundo.
Despersonalizando-se, o ”eu” desaparece, fazendo surgir a persona, isto é, a máscara.
No interior do poeta encontram-se vários “eu”. Enquanto ser múltiplo, Pessoa não consegue encontrar-se nem definir-se em nenhum deles, sendo incapaz de se reconhecer a si próprio – é um mero observador de si mesmo. Sofre a vida sendo incapaz de a viver.
No poema “Não sei quantas almas tenho”, o sujeito poético confessa a sua fragmentação em múltiplos “eu”, revelando a sua dor de pensar e a intelectualização do sentir. É esta última que o conduz através de um processo constante de autoanálise. Em dúvida e indefinido quanto à sua identidade, angustiado pelo autoconhecimento – “Por isso, alheio, vou lendo / como páginas meu ser” – é incapaz de viver a vida, mergulhando no tédio e na angústia existenciais.
Será através da fragmentação do “eu” que Fernando Pessoa tenta encontrar a totalidade de forma a conciliar o ato de pensar e o do sentir.


BREVE ANÁLISE DO POEMA "O INFANTE", "MENSAGEM"




O INFANTE


Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!



- Podemos considerar três momentos: 1º, 1º verso; 2º, até final 2ª estrofe e 3º, até ao final do poema.
- Interpretação de dois elementos importantes:
-        Sonho – desejo de desvendar o desconhecido, de ir mais além; a conquista do mar, a construção do Império Português.
-        Detentor – Deus; a vontade de Deus é determinante mas sem o sonho humano, nada seria possível.
- Significado da sequência do primeiro verso:
-        Deus: deseja, ordena, comanda;
-        Homem: sonha, planeia, executa;
-        Obra: nasce, realiza-se através das mãos do Homem.
-         
- Desenvolvimento da estrutura tripartida:
·         Deus quis que o mar fosse o caminho que unisse os diferentes continentes 
          (vv. 2-3);
·         Deus sagrou / escolheu o infante D. Henrique, o infante de Sagres para iniciar essa tarefa (v. 4), levando-o a “sonhar” com isso («o homem sonha»);-
·         «a obra nasce»: a pouco e pouco as caravelas ligaram ilhas e continentes, foram «até ao fim do mundo», percorreram «a terra inteira» (segunda estrofe).

- «Quem te sagrou (relação com Sagres, Algarve) criou-te português»: os portugueses foram escolhidos por Deus para levar a cabo esta empresa; logo, este é um povo eleito, designado por Deus, o único capaz de realizar este empreendimento e que será o intermediário entre Deus e a obra.

- Ideia expressa nos dois últimos versos:
·      «Cumpriu-se o Mar», ou seja, realizou-se o sonho do mar ser um caminho para unir os diferentes continentes;
·      Contudo, «o Império se desfez»: o poderio português acabou na época dos Descobrimentos (Portugal perdeu a independência logo a seguir, com a morte de D. Sebastião);
·      «Senhor, falta cumprir-se Portugal!»: desejo de que o país volte a ser uma grande potência mundial, que o Império Português ressurja e que não seja apenas marítimo; Portugal deve realizar-se e engrandecer-se num novo império civilizacional (a que Pessoa chamou de “Quinto Império”).

- O poema é um ciclo fechado:

DEUS       HOMEM      OBRA    DEUS (e povo  português)


 Senhor,

 





- As afirmações sucessivas aumentam progressivamente o ritmo do texto; o aparecimento frequente de maiúsculas, leva-nos a pensar no Paulismo de Pessoa; elas chamam a atenção do leitor para aspectos importantes no texto.



Fernando Pessoa versus Alberto Caeiro




            Fernando Pessoa nunca conseguiu evitar o incómodo de pensar.
           Tentou sair, sem o conseguir, do drama do seu “eu” para quem “pensar era sentir dor”.
            Assim, transferiu a sua alma para um poeta bucólico que olha e sente o mundo com simplicidade. Mas nem deste modo o poeta consegue fugir à inteligência que tolda a simples alegria de ver.

            Fernando Pessoa, um novelo enrolado para dentro ou drama de um “eu” que não se consegue harmonizar com o exterior. Formalmente, são recorrentes na poesia ortónima as orações subordinadas que indiciam a necessidade psicológica deste “eu” de se explicar, justificar.
            Pelo contrário, Caeiro vive em perfeito equilíbrio com a Natureza, com o exterior ou mundo real, de forma direta (expressa-se, sobretudo, através de orações coordenadas com recorrência à copulativa [e] e à disjuntiva [ou]).
            Caeiro escreve e pensa versos a passear, atividades simultâneas sugeridas pela presença das formas no gerúndio, base da originalidade da sua poesia, caracterizada pela calma e pelo movimento das imagens.
            Não será pois difícil perceber que, com Caeiro, nos encontramos nos antípodas da poesia ortónima. Enquanto Pessoa é “Um novelo embrulhado para o lado de dentro”, Alberto Caeiro desembrulha-se em sensações, desembrulhando ao mesmo tempo tudo na sua “realidade imediata”. Por esta razão, Caeiro não sofre o que leva Pessoa ortónimo a considerá-lo o “mestre” porque consegue o que para ele é inatingível.
            E, se a poesia do “mestre” se caracteriza pela utilização de um vocabulário simples e prosaico, pela calma e movimento de um caminhar sem rumo que nos surge lado a lado com um “sentar-se”, já na poesia do ortónimo não existe progressão.
            Caeiro é um ser natural que vive no seio da Natureza (daí o seu vocabulário e imagística simples, do campo semântico da própria Natureza: rebanhos, pastor, vento, sol e pôr-do-sol) e que tem “pensamentos contentes” embora lamente que estes sejam contentes porque “pensar incomoda como andar à chuva”. Ora, facilmente se reconhece neste processo um modo de pensamento que derruba a teoria de um Caeiro “ser-não-pensante”.
A própria ideia da recusa de pensar, obriga a pensar nisso.
            Caeiro não ambiciona nada, nem o ser poeta mas, e apesar de não querer fazer literatura, há literatura, há expressividade literária neste texto – falo de “O Guardador de Rebanhos”.
            Alberto Caeiro vê as coisas apenas com os olhos, não com a mente. Quando olha para uma flor, não permite que isso provoque quaisquer pensamentos ou, tomando o exemplo da pedra: a única coisa que uma pedra lhe diz é que nada tem para lhe dizer.
“A sua poesia é, de facto, “sensacionista”. A sua base é a substituição do pensamento pela sensação, não só como base de inspiração (…)  mas como meio de expressão (…).”
Por sensação entende Caeiro a sensação das coisas tal como são, sem acrescentar qualquer elemento do pensamento pessoal, convenção, sentimento ou qualquer outro lugar da alma.


Poemas Inconjuntos

(excerto)

Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma.

Nem procurei achar nada.

Nem achei que houvesse mais explicação.

Que a palavra explicação não tem sentido nenhum.


            NOTA:

            Estudei Fernando Pessoa na cadeira de Literatura Portuguesa I no 2º ano da Fac da UNL. A docente disse então que a melhor forma de descobrirmos Pessoa era ler toda a sua obra uma vez que tudo está lá, nas explicações do Poeta, nas palavras que são a obra, afinal, essa teoria praticamente desconhecida que é o conjunto dos seus textos em Prosa (realço Páginas Íntimas e de Auto Interpretação).

            Deixo aqui alguns versos de Caeiro que o explicam par lui-même.


            (sobre as coisas)

            Eu nem por reais as devia tratar
            Eu não as devia tratar por nada
            Eu devia vê-las apenas;
            Vê-las até não poder pensar nada.


            O que nós vemos das coisas são as coisas.
            Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra?

            Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que conhecê-la.
            Porque conhecer é nunca ter visto pela primeira vez
            E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.


            A minha poesia é natural como levantar-se o vento.


            Eu nem sequer sou poeta: vejo.

            Eu não tenho filosofia, tenho sentidos.




A QUESTÃO DOS HETERÓNIMOS - ALBERTO CAEIRO


“Não procures nem creias:
Tudo é oculto”
(Fernando Pessoa)




    “Alberto Caeiro, desejando-se um simples homem da natureza, inteiramente desligado dos valores da cultura, pretendeu, sobretudo, ser; Álvaro de Campos, sem se mostrar tão radical na recusa dos valores culturais - mas contestando-os, afinal, de modo muito mais corrosivo - esforçou-se principalmente por sentir, em lúcida histeria, de acordo com os ritmos do mundo moderno; e Ricardo Reis, por seu turno, não mais desejou que viver segundo o ensinamento de todas as culturas, sinteticamente recolhidas numa sabedoria que vem de longe e que nem por isso deixa de ser pessoal. Em suma: uma arte de SER, uma arte de SENTIR, uma arte de VIVER..
David Mourão-Ferreira in O Rosto e as Máscaras



A QUESTÃO DOS HETERÓNIMOS

    
A questão humana dos heterónimos, tanto ou mais que a questão puramente literária, tem atraído as atenções gerais. Concebidos como individualidades distintas da do autor, este criou-lhes uma biografia e até um horóscopo próprios. Encontram-se ligados a alguns dos problemas centrais da sua obra: a unidade ou a pluralidade do eu, a sinceridade, a noção de realidade e a estranheza da existência. Traduzem, por assim dizer, a consciência da fragmentação do eu, reduzindo o eu «real» de Pessoa a um papel que não é maior que o de qualquer um dos seus heterónimos na existência literária do poeta. Assim questiona Pessoa o conceito metafísico de tradição romântica da unidade do sujeito e da sinceridade da expressão da sua emotividade através da linguagem. Enveredando por vários fingimentos, que aprofundam uma teia de polémicas entre si, opondo-se e completando-se, os heterónimos são a mentalização de certas emoções e perspetivas, a sua representação irónica pela inteligência. Deles se destacam três: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

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Alberto Caeiro
    Segundo a carta de Fernando Pessoa sobre a génese dos seus heterónimos, Caeiro (1885-1915) é o Mestre, inclusive do próprio Pessoa ortónimo. Nasceu em Lisboa e aí morreu, tuberculoso, em 1915, embora a maior parte da sua vida tenha decorrido numa quinta no Ribatejo, onde foram escritos quase todos os seus poemas, os do livro O Guardador de Rebanhos, os de O Pastor Amoroso e os Poemas Inconjuntos, sendo os do último período da sua vida escritos em Lisboa, quando se encontrava já gravemente doente (daí, segundo Pessoa, a «novidade um pouco estranha ao carácter geral da obra»). Sem profissão e pouco instruído (teria apenas a instrução primária), e, por isso, «escrevendo mal o português», órfão desde muito cedo, vivia de pequenos rendimentos, com uma tia-avó. Caeiro era, segundo ele próprio, «o único poeta da natureza», procurando viver a exterioridade das sensações e recusando a metafísica, caracterizando-se pelo seu panteísmo e sensacionismo, que, de modo diferente, Álvaro de Campos e Ricardo Reis irão assimilar.


... / ...

    Nasceu em 16 de Abril de 1885, em Lisboa, cidade onde morreu tuberculoso em 1915 (porém, há poemas de Caeiro datados de 1930). De estatura média, era louro e tinha olhos azuis. Orfão de pai e mãe desde muito cedo, viveu quase toda a vida no campo, numa quinta do Ribatejo, com uma tia-avó.
    Não teve profissão (vivia de pequenos rendimentos) nem educação literária além da quarta classe. Admirava Cesário Verde. Escrevia mal, segundo Ricardo Reis e Fernando Pessoa. Apesar disso, todos (heterónimos e ortónimo) consideravam Caeiro o Mestre. Com os seus ensinamentos Pessoa tenta aprender a viver em paz.

CARACTERÍSTICAS SEMÂNTICAS E IDEOLÓGICAS

·     Poesia deambulatória (passeios pelo campo).
·     Comunhão total com a Natureza – submissão do Homem às leis naturais (como uma planta ou um rio), não devendo racionalizar os processos naturais (por exemplo, as ideias de vida ou de morte, que existem como verdades absolutas). Considera-se “o único poeta da natureza”.  
·     Panteísmo – crença de que as coisas naturais são divinas, deuses; misticismo naturalista.
·     Objetivismo pagão – descrença total na transcendência; a única verdade é a sensação, sobretudo visual (sensacionismo): “Vi como um danado”.
·     Predomínio da sensação sobre o pensamento – renúncia do pensamento, pois este implica a deturpação do significado das coisas: ”pensar nas coisas é não as compreender”.
·     Recusa do pensamento abstrato – é o poeta do real objetivo – nada existe para além daquilo que é percetível através dos sentidos. Transforma o abstrato no concreto.
·     Lírico, instintivo, espontâneo, ingénuo, inculto (em relação à sabedoria escolar).
·     Recusa a expressão em termos de sentimentos; recusa os poetas “místicos”.
·     Não quer saber do Passado nem do Futuro – vive no Presente.
·     Fazer poesia é uma atitude involuntária, é a sua maneira de estar vivo.
·     Rutura com os cânones estéticos tradicionais, aos níveis temático e formal.
·     Amoralidade – a realidade não é vista à luz da moralidade ou da imoralidade.
·     Contradições – atribuídas à “doença”, à necessidade de “falar a linguagem dos homens”, à dificuldade de “aprender a desaprender” ou ao sentimento amoroso.

CARACTERÍSTICAS FORMAIS

·     Ausência de grandes preocupações estilísticas, nomeadamente a nível fónico: “escrevo a prosa dos meus versos”.
·     Vocabulário e imagística do campo semântico da natureza.
·     Linguagem simples, familiar, com tautologias (linguagem próxima da infantil: “uma borboleta é apenas borboleta / e a flor é apenas flor”).
·     Versilibrismo: verso livre e métrica irregular.
·     Frases simples ou coordenadas com pontuação lógica.
·     Predomínio do presente do indicativo (modo do real).
·     Adjetivação pobre e sobretudo descritiva, objetiva.
·     Comparações, simetrias, paralelismos de construção e assíndetos.
·     Ritmo lento (remetendo para a calma aceitação das coisas).