A
sinceridade e o fingimento
Pessoa trouxe à
poesia portuguesa a dialética, como movimento pela unidade dos opostos, da sinceridade-fingimento,
ligando-a estreitamente aliás à da consciência-inconsciência
e à do sentir-pensar. (…)
Regressando ao caminho que leva à teoria do fingimento, parece-nos dever-se
distinguir entre os traços precursores apontados, a autoexplicação “patológica”
do fenómeno da heteronímia, por um lado, e o modo como ele efetivamente se
processa em Pessoa. (…) Sim, Pessoa ganhou
consciência de que “o poeta é fingidor”; a própria aptidão de exprimir “a dor
que deveras sente” só se torna possível graças a uma esmerada arte de
fingimento, conforme assevera a quadra inicial da “Autopsicografia”. (…)
Óscar Lopes, Lit. Port.- III – Época Contemporânea,
História
Ilustrada das Grandes Literaturas, Estúdios Cor,
Lisboa, 1973
Ela
canta, pobre ceifeira
Ela
canta, pobre ceifeira,
Julgando-se
feliz talvez;
Canta,
e ceifa, e a sua voz, cheia
De
alegre e anônima viuvez,
Ondula
como um canto de ave
No
ar limpo como um limiar,
E
há curvas no enredo suave
Do
som que ela tem a cantar.
Ouvi-la
alegra e entristece,
Na
sua voz há o campo e a lida,
E
canta como se tivesse
Mais
razões pra cantar que a vida.
Ah,
canta, canta sem razão!
O
que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama
no meu coração
A
tua incerta voz ondeando!
Ah,
poder ser tu, sendo eu!
Ter
a tua alegre inconsciência,
E
a consciência disso! Ó céu!
Ó
campo! Ó canção! A ciência
Pesa
tanto e a vida é tão breve!
Entrai
por mim dentro! Tornai
Minha
alma a vossa sombra leve!
Depois,
levando-me, passai!
Fernando Pessoa, in
"Cancioneiro"
_______________ *****
______
Temática
abordada: a Dor de Pensar (pensar faz
sofrer).
Dialética
subjacente: conflito = sentir/pensar; consciência / inconsciência.
Trata-se
de um poema ainda um pouco ligado ao intersecionismo.
Este
texto exemplifica o conflito entre o sentir e o pensar, ou entre a ambição da
felicidade pura e a frustração que a consciência-de-si implica.
Podemos
considerar dois momentos neste texto: o primeiro constituído pelas três
primeiras quadras e o segundo pelas três restantes.
Nas
três primeiras quadras a focalização incide sobre a ceifeira, objeto de análise
do poeta, ceifeira que “Canta, e ceifa,”.
A
voz da ceifeira desperta no sujeito poético sentimentos contraditórios – “Ouvi-la
alegra e entristece” – que remetem para o contraste existente entre a vida
pobre e dura que a mesma tem e o canto que parece alegre – “Julgando-se feliz
talvez,”; “E canta como se tivesse /
Mais razões p’ra cantar que a vida”. Assim, na sua descrição da ceifeira, o
sujeito poético aponta para um canto instintivamente alegre. Esta descrição
seria objetiva se o s.p. não introduzisse a sua perspetiva; a subjetividade vai
adensar-se de seguida, ao longo do segundo momento.
Nesta
primeira parte ou momento predomina o tempo verbal Presente bem como um tipo de
pontuação mais lógica, “linear”, “suave” próprias da descrição. O Presente atribui
um caráter mais durativo à “ação” uma vez que projeta a voz doce da ceifeira,
fazendo-a deslizar suavemente pela imaginação do poeta que nela medita.
A
sugestão da lenta passagem do tempo é dada pela forma perifrástica e pelo
gerúndio: “a cantar”, “está pensando”, “ondeando” e “levando-me”.
Podemos
concluir que, se atendermos às razões da ceifeira, o seu canto alegra; se a virmos
na perspetiva total do poeta, entristece.
O
segundo momento deste poema é constituído pelas três últimas quadras o qual se
encontra marcado por uma muito maior subjetividade.
Nele,
o sujeito de enunciação exprime a sua emoção perante a canção inconsciente /
alegre da ceifeira, tecendo considerações sobre a simplicidade da ceifeira, e,
sobretudo, sobre si próprio, o que muito contribui para essa mesma
subjetividade pois o objeto de análise é agora o s.p. por oposição à
simplicidade da ceifeira.
Alguns
aspetos a considerar: o tom é diferente; o eu poético aproxima-se da ceifeira
nesse tratamento por “tu” e a pontuação passa de linear ou lógica a emotiva o
que se verifica na utilização de pontos de exclamação quando o s.p. se dirige
diretamente aos elementos da natureza e no emprego da forma verbal do Imperativo
- “Ah, canta, canta sem razão!”; “Ah, poder ser tu, sendo eu!”; “Ó céu! / Ó
campo! / Ó canção!”.
Esta
segunda parte pode ser ainda dividida em dois momentos:
1º
- o s.p. lança um apelo (função apelativa da linguagem) à ceifeira para que
continue a cantar a sua canção inconsciente
e para que derrame “no [seu] coração”, vv.15 / 16, porque a emoção que
experimentou obrigou-o a pensar e a desejar ser ela sem deixar de ser ele,
tendo a sua “alegre inconsciência / E a consciência disso…”.
Deste
modo, o s.p. aspira ao impossível pois ter
consciência da inconsciência é deixar de ser inconsciente. Ele tem
consciência desta impossibilidade e por isso apela ao céu, ao campo e à canção,
personificados =conduz= “dor de pensar”.
2º
- última quadra, culminar de todo o processo que leva o s.p. a desejar a
dispersão, o aniquilamento.
Tendo
sido um dos poetas que mais se serviu da inteligência, Pessoa sempre se sentiu
torturado por ser um ser pensante. Por isso aspira à inconsciência da ceifeira
quando ouve a sua “incerta voz” (alegre e triste): “Ah, poder ser tu, sendo eu!
/ Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso! …”. Deste modo, o
s.p. reflete sobre a intelectualização do sentir, “O que em mim sente ‘stá
pensando.”; sobre a “dor de pensar”, “A ciência / Pesa tanto e a vida é tão breve!”,
desejando a inconsciência, “Tornai / Minha alma a vossa sombra leve! / Depois,
levando-me, passai!” (tal como a voz da ceifeira que se espalha no ar).
A temática da
fragmentação do “eu” é evidente, remetendo para a criação dos heterónimos:
“Ah,
poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência
disso!”
É
algo sem solução, este problema de querer ser tu e permanecer eu e ser
consciente do inconsciente; ser e não ser, consciência / inconsciência - (paradoxo).
Mesmo
a própria ciência (pensamento) é fonte de sofrimento – “dor de pensar” – e até
mesmo o pensamento é causa de sofrimento, v.14; por isso, o poema culmina na
última quadra, como já foi referido, na expressão de um desejo que conduza a um
fim uma vez que, em situação alguma, se consegue evitar o sofrimento.
** O pensamento racional está na origem do ser
incapaz de verdadeiramente sentir, sensitivamente, instintivamente, como quem
descobre o mundo sem preconceitos, sem nada dele saber – “A ciência / Pesa
tanto e a vida é tão breve!” – constatação amarga, reforço à dor de pensar, à
lucidez.
*** Recursos estilísticos:
Antítese – versos 4, 9, 18-19;
Dupla
adjetivação – verso 4;
Comparação
– versos 5, 6;
Invocação
– versos 13, 15 e seguintes;
Metáfora
– versos 5, 7, 15, 16;
Exclamações
e verbos no imperativo – versos 13, 15-16 e seguintes;
Aspeto
formal: poema composto por seis quadras em versos octossílabos. O esquema
rimático de todas as quadras é ABAB e a rima é cruzada.