in A estátua e a pedra de José
Saramago,
Fundação José
Saramago, 2013
José Saramago contactou com Ricardo
Reis muito cedo, muito antes de saber o que era um heterónimo ou quem era Fernando
Pessoa.
“Da obra magnífica de Ricardo Reis
impressionava-me sobretudo um verso que diz “sábio é o que se contenta com o
espetáculo do mundo”. Quer dizer, deste formidável poeta, que tanto me atraía, indignava-me
esta espécie de indolência, esta filosofia de vida tão complacente que se me
afigurava monstruosa. […]
[…] caiu-me do teto uma evidência: o
ano da morte de Ricardo Reis. Isto é, pensando que Pessoa, que morreu em 1935,
não deixou escrita em lugar algum a data da morte de Ricardo Reis, pensando que
o heterónimo não pode viver muito mais que o criador, pensando que todos temos nove
meses de vida que não contamos porque não vivemos fora das nossas mães,
pensando que talvez depois de mortos possamos contar com outros nove meses de
vida, que será mais ou menos o tempo que dura a nossa memória, pensando em tudo
isto, a sentença que me caiu do teto, “o ano da morte de Ricardo Reis”,
misturada com o antigo rancor e a permanente admiração, animaram-me a
confrontar Ricardo Reis com o espetáculo do mundo, no ano da sua morte que, na
minha lógica, tem de ser 1936, quer dizer, o ano em que começou a Guerra de
Espanha, o ano em que a besta fascista
ocupou a Etiópia, o ano em que o nazismo consolidou posições, o ano em que se
criaram as mocidades e as milícias fascistas em Portugal… Num tempo convulso em
que o que havia de melhor parecia desmoronar-se, […] Ricardo Reis, o poeta das odes maravilhosas,
sentava-se diante do mundo, como se de um pôr do sol se tratasse, e vendo o que
se estava a passar, sentia-se sábio. Assim nasceu este romance […]”