quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

FARSA DE INÊS PEREIRA, GIL VICENTE - CONTEXTUALIZAÇÃO II






Humanismo

Embora se trate de um termo polissémico, ele interessa-nos apenas no seu sentido mais restrito ou histórico, entendido enquanto o movimento literário e cultural de uma época marcada por profundas transformações na sociedade europeia.

O Humanismo corresponde ao período de transição da Idade Média para a Idade Clássica. Tem como marcos iniciais as nomeações de Fernão Lopes como Guarda-Mor da Torre do Tombo (local onde se guardavam os documentos oficiais), em 1418 e, como Cronista-Mor do Reino, em 1434, quando recebeu de D. Duarte, rei de Portugal, a incumbência de escrever a história dos reis que o precederam.

Historicamente, o Humanismo foi um movimento intelectual italiano do final do século XIII que se difundiu por quase toda a Europa, isto porque, após a queda de Constantinopla em 1453, muitos intelectuais gregos (professores, religiosos e artistas) refugiaram-se na Itália e começaram a propagar uma nova visão de mundo, mais antropocêntrica, indo de encontro à visão teocêntrica medieval. Entre as principais ideias humanistas estavam:

• recuperação da cultura antiga, através do estudo e imitação dos poetas e filósofos greco-latinos;

• revalorização da filosofia de Platão, especialmente no que diz respeito à distinção entre o amor espiritual e o carnal - neoplatonismo;

• crítica à hierarquia medieval, o homem reivindicando para si uma posição de destaque no Universo - não aceitação passiva das imposições místicas difundidas na ideia de destino;

• bifrontismo, coexistência de características medievais (feudalismo, teocentrismo) e renascentistas (mercantilismo, antropocentrismo, pragmatismo burguês).

No final da Idade Média, Portugal passava por profundas transformações. O desenvolvimento de outras atividades económicas estimulou a crise do sistema feudal e deu início ao chamado mercantilismo – a economia de subsistência é substituída gradativamente por atividades comerciais. Surgem as pequenas cidades, chamadas burgos, e com elas uma nova classe social, a burguesia. Muitas descobertas são feitas, entre elas a invenção da imprensa (em 1448, por Gutenberg) e de instrumentos relacionados com a expansão ultramarina. Mas é, sem dúvida, a Revolução de Avis (1383-1385) o marco cronológico da consolidação do Estado Nacional Português. Através dela estabelece-se a política centralizadora do poder nas mãos do rei,  pela burguesia mercantilista. A partir da primeira conquista ultramarina portuguesa, a Tomada de Ceuta, em 1415, inicia-se o período das Grandes Navegações, que consolidam o nacionalismo português.

 
A produção literária desse período subdivide-se em:

·         Poesia Palaciana

crónicas de Fernão Lopes
• Prosa
prosa doutrinária
novelas de cavalaria

 

A Poesia Palaciana, como o próprio nome indica, era poesia produzida no ambiente dos palácios, feita por nobres e destinada à corte. Ao contrário dos códices (manuscritos) trovadorescos, grande parte da produção poética desse período foi recolhida por Garcia Resende, no Cancioneiro Geral, formado por 880 composições, impresso em 1516. Entre suas principais características estão:

- separação entre música e texto – a poesia destina-se à leitura. Assim, a própria linguagem é responsável pelo ritmo e expressividade. O termo trovador aos poucos assume um caráter pejorativo e começa a surgir a figura do poeta;

- utilização das redondilhas – versos compostos por cinco (redondilhas menores) ou sete sílabas poéticas (redondilhas maiores);

- temática variada – com composições religiosas, satíricas, didáticas, heroicas e líricas. O lirismo amoroso trovadoresco, a partir da influência de Petrarca (um dos precursores do Humanismo italiano), assume uma nova conotação, a mulher idealizada, inatingível, carnaliza-se e a sensualidade, reprimida nas cantigas de amor, passa a ser frequente.

Fernão Lopes é a principal figura da prosa humanista, considerado o fundador da historiografia portuguesa. Sua importância deve-se não só ao aspeto histórico da sua produção, mas também ao aspeto artístico das suas crónicas. Nas suas crónicas, apesar de regiocêntricas, o povo aparece pela primeira vez com coautor das mudanças históricas portuguesas. Entre as suas características, destacam-se: a imparcialidade, o registo documental, a criticidade e o nacionalismo. São da autoria de Fernão Lopes:

- A prosa doutrinária, também chamada de ensinanças, corresponde a textos de caráter didático, destinados à nobreza. São obras para o aprendizado de certas artes da época, como a montaria.

- As novelas de cavalaria conservam basicamente as mesmas características do Trovadorismo.

·         O Teatro de Gil Vicente

Antes da produção vicentina é praticamente impossível falar-se em teatro. A manifestação teatral da Idade Média limitava-se às encenações de caráter litúrgico, presas aos rituais da religião católica. As encenações religiosas apresentadas no interior das igrejas dividiam-se em:

- mistério – representação da vida de Jesus Cristo;

- milagre – representação da vida de santos;

- moralidade – representações curtas com finalidade didática ou moralizante.

As encenações que ocorriam fora dos templos religiosos recebiam o nome de profanas e apresentavam um caráter mais popular e não estavam relacionadas com os cultos católicos.

Pouco se sabe sobre os dados biográficos de Gil Vicente. Acredita-se que tenha tido muito prestígio na corte portuguesa, desempenhando a função de organizador das grandes festas palacianas. Para outros, entretanto, desempenhava a função de ourives, atraindo a atenção da rainha Leonor. Mas é unanime o seu reconhecimento como o fundador do teatro português e o maior representante do Humanismo.

Assim como o período em que se vivia, as suas peças apresentavam o bifrontismo como característica central. Ora com fortes marcas medievais, ora com antecipações renascentistas.

Gil Vicente criticou toda a sociedade da sua época, as suas peças apresentam indivíduos de todos os segmentos sociais. Só não criticou mordazmente a Família Real, da qual dependia. É importante destacar que todo o moralismo vicentino não é contra as instituições mas contra os indivíduos que as corrompiam. Tanto que em nenhum de seus trabalhos questionou qualquer verdade cristã, apresentando uma visão teocêntrica e conservadora da sociedade. Na realidade, era contra as novidades trazidas pelas mudanças do período que punham em risco a integridade do povo português. Os seus autos representam uma tentativa de resgate dessa integridade que se perdia através da corrupção, do adultério e da ambição.

Por outro lado, Gil Vicente inovou, mesmo escrevendo em redondilhas, não seguiu a rigidez do teatro clássico vigente até então que contemplava a unidade de ação, de tempo e de espaço. As suas representações apresentavam uma grande variedade temática, povoadas por inúmeros personagens, amplitude temporal e justaposição de lugares. A alegoria, as personagens-tipo e a variedade linguística também o distinguem do seu tempo. As suas personagens não apresentam características particularizadas, pelo contrário, são generalizações, estereótipos, que representam uma categoria profissional ou uma classe social (povoam as suas peças as alcoviteiras, os fidalgos, os frades, os judeus). Outras vezes, através da abstração, as personagens representam ideias ou instituições (a Fama, a Igreja, a Lusitânia, Todo-o-Mundo e Ninguém). As personagens vicentinas expressavam-se através de diversos registos linguísticos: arcaísmos, castelhano, latim, português chulo, coloquial, popular, culto e erudito.

A produção teatral de Gil Vicente divide-se em três fases:

- Primeira Fase – marcada pelos traços medievais e pela influência espanhola de Juan del Encina. São desta fase: O Monólogo do Vaqueiro, o Auto Pastoril Castelhano, o Auto dos Reis Magos, entre outros.

- Segunda Fase – aparecem a sátira dos costumes e a forte crítica social. São desta fase: Quem tem farelos?, O Velho da Horta, o Auto da Índia e a Exortação da Guerra.

- Terceira Fase – aprofundamento da crítica social através da tragicomédia alegórica, da variedade temática e linguística, é o período da maturidade expressiva. São desta fase: A Trilogia das Barcas, a Farsa de Inês Pereira, o Auto da Lusitânia.

·         A Farsa de Inês Pereira

Conta a história que a Farsa de Inês Pereira surgiu por volta de 1523, quando a autoria dos textos de Gil Vicente foi questionada. Ele, a fim de provar a sua inocência, pediu que lhe dessem um tema qualquer para que produzisse uma peça. O tema dado foi um dito popular: “mais quero um asno que me leve que cavalo que me derrube”, expressão conhecidíssima da célebre farsa.

Inês Pereira, jovem ambiciosa e namoradeira, cansada dos afazeres domésticos decide se casar, mas não com qualquer rapaz de sua classe social, deseja um casamento nobre, com um homem que seja galante, discreto e que saiba cantar. Recusa o casamento com Pêro Marques, que mesmo rico era camponês e casa-se com Brás da Mata, falso escudeiro que a maltrata após o casamento.

Com a morte do marido, a jovem casa-se novamente com o primeiro pretendente, mesmo sem amá-lo. Ingénuo e devotado, Pêro Marques não percebe a traição da mulher com um falso religioso e, na cena final da farsa, leva a própria esposa para os braços do amante, daí a frase: “mais quero um asno que me leve que cavalo que me derrube”.

 

 

FARSA DE INÊS PEREIRA, GIL VICENTE - CONTEXTUALIZAÇÃO I




APONTAMENTOS…


O MOMENTO HISTÓRICO

O Portugal do século XVI é uma nação rica em conquistas ultramarinas, mas deficiente em produção agrícola e manufatureira. Para conseguir abastecer-se internamente a única saída é trazer ouro e prata das viagens além-mar. A crise económica gera um descontentamento que ameaça os antigos valores, dissolvendo a aliança entre clero e nobreza, entre mercadores e soberanos. Essa crise é retratada na obra de Gil Vicente pelas personagens que buscam enriquecer a qualquer preço, aproveitando a situação caótica do país.


EUROPA vs PORTUGAL

Em toda a Europa, o século XVI é o momento de ascensão da burguesia, valorização da ciência e do homem e questionamento da Igreja, com a Reforma protestante. Em Portugal, entretanto, desenvolve-se um humanismo um pouco diferente: as ciências são valorizadas, mas o poder da Igreja e da nobreza não é questionado. Muito pelo contrário: a Inquisição e a Companhia de Jesus são os principais instrumentos da Contrarreforma, que chega para reprimir a cultura humanista proporcionada pelo contato com outras culturas, decorrente dos descobrimentos.


RELIGIOSIDADE E REFORMISMO

Gil Vicente vive numa época de transição de valores: os ideais medievais chocam-se com a realidade renascentista o que se pode verificar na sua obra. Critica os maus padres, mas poupa a Igreja; critica os maus nobres, mas não questiona o poder real. Os valores medievais são representados pela forte religiosidade, pela instituição da Igreja, pelos dogmas da fé. Por outro lado, o espírito reformista aparece na crítica aos padres que têm uma vida desregrada e exploram a ingenuidade dos crentes para manipulá-los. Um exemplo disso é o sermão em que Gil Vicente procura explicar racionalmente as causas do terramoto ocorrido em Lisboa, enquanto os padres diziam que era a ira de Deus manifestando-se contra a falta de fé dos cristãos-novos – os judeus convertidos ao cristianismo para escaparem à Inquisição.  Ao transpor momentos da vida social para o teatro, as peças vicentinas conquistam o público pela simplicidade com que mostram as falhas humanas, para que as pessoas se possam corrigir e receber as bênçãos da vida eterna. As peças conquistam o público pela simplicidade e divertem ao mesmo tempo que ensinam.


 IMPORTANTE!

Gil Vicente é importante na literatura portuguesa não só por fazer um retrato da sociedade de seu tempo, mas principalmente por abordar a vida do homem na sua totalidade, desde os problemas domésticos mais corriqueiros até aos mais complicados conflitos morais.

 

O GÉNERO

Gil Vicente é um artista medieval escrevendo em plena Renascença, momento em que as próprias estruturas da arte se encontravam em transformação. O auto, género muito popular até então, caracterizava-se pelo conteúdo simbólico: os atores representavam entidades abstratas de caráter religioso ou moral, como o pecado, a hipocrisia, a luxúria, a avareza, a virtude, a bondade etc. Embora a Farsa de Inês Pereira tenha sido publicada primeiramente como Auto de Inês Pereira, o conteúdo da peça não corresponde às exigências do auto. Gil Vicente criou um novo género para o qual não havia um nome na época, a farsa.

 

IMPORTANTE!

A farsa é um tipo de encenação teatral curta que explora situações engraçadas da vida quotidiana, apelando para a caricatura e os exageros, a fim de provocar o riso no espetador mas, ao contrário da comédia, não tem um fundo moralizante.


CRÍTICA SOCIAL NA FARSA DE INÊS PEREIRA

A Farsa de Inês Pereira possui, como tantas outras obras de Gil Vicente, uma componente marcada de crítica a tipos sociais. Destaque-se a jovem casadoira, figura que entre os séculos XVI e XXI terá apenas sofrido pequenas alterações, ao nível da cosmética. Assim também sucede com o príncipe encantado (o Escudeiro), com a Mãe, com Pêro Marques, enfim, toda a galeria de personagens, que correspondem a tipologias sociais com equivalentes na atualidade. O tom de farsa serve perfeitamente os objetivos imanentes à crítica. O riso é uma forma de criticar e de caricaturar costumes. Daí decorre um outro vetor a sublinhar nesta peça: o cómico de situação, um provocador do riso com o qual se castigam os costumes. Assim, por exemplo, a incompreensão entre Mãe e filha tipifica o conflito de gerações, tão velho como a história da humanidade. Atente-se ainda na crítica à irreflexão da juventude que assume decisões vitais, por vezes, de modo fundamentalista. Não esqueçamos, finalmente, a crítica social aos três casamenteiros Leonor, Latão e Vidal, bem-humorada, mas impiedosa quanto à análise do motivo que fundamenta a sua atividade: o vil metal.


ESTILO NA FARSA DE INÊS PEREIRA

Escrita em verso, a Farsa de Inês Pereira incorpora trocadilhos, ditos populares e expressões típicas de cada classe social. Gil Vicente nesta farsa lança mão a diferentes recursos linguísticos que formam o estilo da farsa.

Ironia - A ironia é utilizada na peça como instrumento de crítica social e como motivadora do riso. Ela aparece sob diversas formas, quer seja através de palavras expressando o seu sentido contrário, quer jogando com o duplo sentido ou ainda acentuando a desproporção entre uma ação e a sua finalidade.

Eis alguns exemplos "Mãe: Mana, conhecia-te ele?

Lianor: Mas, queria conhecer-me!" 

Aqui, o efeito cómico surge a partir de uma construção de duplo sentido do verbo conhecer: saber e relacionamento sexual.

"Inês: Mostrai cá, meu guarda-mor, e veremos o que é que vem."

É uma fala de Inês Pereira dirigida ao Moço tratando-o por guarda-mor. Guarda--Mor era um tipo de tratamento que era, então, dispensado aos fidalgos da Guarda real. Inês joga com a desproporção entre a denominação que lhe dá e a real condição do Moço.

Cantigas - Resumem ou comentam a ação ou exprimem o estado de espírito de quem as canta.

"Mal herida va la garça enamorada..."

Esta cantiga aparece no casamento de Inês com Brás da Mata e é cantada pelos seus amigos. Cumpre a função de resumir os acontecimentos e tem o dom de previsão do futuro, graças ao simbolismo da garça que representa Inês, caminhando sozinha e triste, depois de um Escudeiro lhe destruir os ideais. Há várias referências a cantigas nesta farsa, eis alguns exemplos:

"Canta o Judeu, Canas de amor, canas de amor...";

“Canta o Escudeiro o romance, Mal me quieren en Castilla...”

O canto, a dança e a música desempenham em Gil Vicente a função de instrumentos para a análise da sociedade da época.

O modo de falar das personagens é o principal recurso vicentino. Assume o papel de mostrar a oposição entre os mais elevados valores morais e os novos valores materialistas. A oposição entre o mundo de ideais de Inês e o discurso de conveniência protagonizado pela mãe.

Inês utiliza palavras ligadas à diversão; "folgar", "prazer", enquanto a Mãe faz recurso a um vocabulário que exprime obrigação: "tarefa", "preguiçosa".

O modo de falar de Pêro Marques evidencia o seu carácter simplório.

No outro extremo, temos as falas do Escudeiro que, apesar de dar azo a belas palavras, revela-se um mau carácter. Temos, então, o modo de falar ao serviço do jogo de contrastes entre a aparência e a essência (o ser).

 
Fonte: net (adaptado)
 

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

PROSA MEDIEVAL - SÉCULO XIII: OS LIVROS DE LINHAGENS




 

 

PROSA MEDIEVAL – SÉCULO XIII

Os Livros de Linhagens (1282-1290), também chamados Nobiliários no século XVI, são quatro obras escritas durante a Idade Média, onde se descreve a genealogia das principais famílias nobres no reino, tanto em linha reta como colateral. São como árvores genealógicas comentadas.

O primeiro, também chamado Livro Velho e o quarto, conhecido como Nobiliário do Conde D. Pedro de Barcelos, estão completos. Dos restantes chegaram até nós apenas fragmentos (Segundo de Linhagens, ou Segundo Livro Velho, e Terceiro Livro de Linhagens, ou Nobiliário da Ajuda). O Livro do Conde D. Pedro de Barcelos é o mais desenvolvido dos quatro, tendo o autor pretendido apesentar um resumo da história universal.





Através dos Nobiliários, é-nos possível conhecer um pouco melhor o pensamento medieval.

Ainda muito importante, é o facto de estes Nobiliários ou Livros de Linhagens apresentarem as origens dos nomes de nobreza que figuravam no livro de matrícula dos reis ou das cortes, permitindo ao fidalgo, ou fidalgote (fidalgo pobre e decaído) livre acesso à casa real, aos palácios e castelos.

Os Livros de Linhagens foram publicados no século XIX por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Historica, volume dedicado aos Scriptores. Conservamos quatro Livros de Linhagens:

I.                   Livro Velho: É anónimo, conservou-se completo e é também o mais antigo. Contém uma relação de pessoas com os seus cruzamentos, descendência…Os comentários são muito breves e a prosa menos ágil do que noutros livros de linhagens.

II.                II Livro Velho: A obra mais extensa, mas que se limita à catalogação de genealogias. Não se conservou de forma completa. Introduz elementos que, desde o ponto de vista contemporâneo, são fantásticos.

III.             Nobiliário da Ajuda: Denomina-se assim porque o manuscrito esteve encadernado com o Cancioneiro da Ajuda. Também não se conservou de forma completa.

IV.             IV Livro de Linhagem ou Nobiliário do Conde D. Pedro: Contém o Nobiliário da Ajuda na íntegra. É muito mais extenso, contém mais comentários e mais pormenorizados, chegando mesmo a constituir um complemento das crónicas. Contém um prólogo do Conde D. Pedro no qual se declara quais são as intenções da obra, às que denomina sete coisas ou sete razões:

 

1.      “Criar amor e amizade entre os nobres e fidalgos de Espanha”.

2.      Dar a conhecer às famílias o tronco de que descendem e os seus parentescos.

3.      Contribuir à união de todos os fidalgos na luta contra os infiéis.

4.      Mostrar a cada fidalgo os nomes dos seus antepassados e alguns feitos dignos de memória, para criar um sentimento de orgulho.

5.      Proporcionar aos reis a possibilidade de dar reconhecimentos ou títulos pelas façanhas dos avôs dos fidalgos (à maneira póstuma).

6.      Dar a conhecer os impedimentos matrimoniais para evitar casamentos nulos e incestos.

7.      Lembrar aos nobres os direitos e obrigações que herdaram em relação aos mosteiros.

    Além disso, os Livros de Linhagens contêm textos de fundo mítico que estão intimamente relacionados, por exemplo, com as lendas das moiras encantadas, narrativas de tradição oral do norte de Portugal e País Basco, que surgem por vezes com a configuração de serpente ou de cabra. Mas há também elementos que apontam para o carácter universal destas lendas.

    Dois exemplos destacados de lendas empregadas no Nobiliário do Conde D. Pedro são

v  A lenda de Dona Marinha, que explica a origem da família dos Marinhos a partir dum ser sobrenatural, uma sereia.

v  A lenda da Dona Pé de Cabra, com a que se explica a origem da família Lopez Haro de Biscaia a partir de uma mulher que é metade humana e metade cabra.

 

      Algumas notas soltas mas não menos importantes…

ü  Os textos das lendas empregadas nos Livros de Linhagens para legitimar a importância de uma família nobre constituem registos escritos a partir da oralidade.

ü  Aquando da produção dos textos destas lendas, as cidades medievais passavam pelo processo de expansão territorial que não se cingia apenas às trocas comerciais mas que permitia, simultaneamente, influências culturais. A burguesia encontrava-se no seu melhor, fundavam-se as primeiras universidades e as entidades jurídicas. Surgiu, por isso, a necessidade de um registo confiável que pudesse ser consultado no futuro e que definisse as relações formais da época. Não é por acaso que os textos que antecederam esse período, sejam predominantemente documentos oficiais. É também importante ter em conta que os textos destas lendas eram produzidos para a elite que dominava o código escrito para além dos poderes político, económico e social da época.

 

Fonte: Internet / Manuais (adaptado)



Livro das Linhagens

Séc.XIV

Comentário de Manuel Rodrigues Lapa (1960,3ªed.). Crestomatia Arcaica. Lisboa: Textos Literários. pp.49-54

(Nota: o til é desenvolvido como n.)

LIVRO DAS LINHAGENS

Livro de Linhagens do Conde D. Pedro



PRÓLOGO

Texto

 

    Em nome de Deus, que he fonte e padre d’amor, e por que este amor nom sofre nehuuna cousa de mall, porem (1) em servi-llo de coraçom he carreyra reall, e nehuun melhor serviço nom (2) pode o homem fazer que amá-lo de todo seu sem (3) e seu proximo como ssi meesmo, por que este (4) preçepto (5) que Deus deu a Moysés na Vedra (6) Ley; porem eu, comde Dom Pedro, filho do muy nobre Rey Dom Denis, ouve de catar (7) por gram trabalho por muitas terras escripturas que fallavam dos linhageens (8). E veemdo as escripturas com grande estudo e em como fallavam doutros gramdes fectos, compuge (9) este livro por gaanhar o seu amor e por meter amor e amizade antre os nobres fidallgos da Espanha, e como quer que (10) antre elles deve aver amizade, segundo seu ordinamento antiigo, em damdo-se fé pera sse nom fazerem mall huuns aos outros, a meos (11) de torvarem (12) a este amor e amizade per desfiarem-sse (13).

    Esto diz Aristótilles: que sse homeens ouvessem antre ssy amizade verdadeira, nom averiam mester reys nem justiças, ca amizade os faria viver seguramente eno serviço de Deus. E a todollos homeens, rricos e pobres, compre (14) amizade. E aos que som meninos ham mester quem os crii e emssine; e sse ssom mançebos ham mester quem nos comselhe, pera fazer sas cousas seguramente; e sse forem velhos, ham mester que lhes acorram (15) aos seus desfalliçimentos (16).

    E os amigos verdadeiros devem-sse guardar em sas pallavras de dizer cousa per que seus amigos nom venham a fama (17) ou a mall, ca per hi se desataria a amizade. E nom se devem mover a crer de ligeiro (18) as cousas que lhes delles digam de mall, e devem-sse guardar segredos e nom devem retraer (19) as obras que sse fezerom.

    E por que nenhuuna amizade nom pode seer tam pura, segumdo natura, come (20) daquelles que desçemdem de huun sangue, por que estes movem-sse mais de ligeiro aas cousas por omde sse mantem, ouve de declarar este Livro per titollos e per allegaçoões, que cada huun fidallgo de ligeiro esto podesse saber, e esta amizade fosse descuberta e nom se perdesse amtre aquelles que a deviam aver. E o que me a esto moveo forom sete cousas:

    A primeira, pera sse comprir e guardar este preçepto de que primeiro fallamos.

    A segunda, he por saberem estes fidallgos de quaes desçenderam de padre a filho e das linhas travessas.

    A terçeyra, por seerem de huun coraçom de averem de seguir os seus emmiigos, que som em estroïmento (21) da fe de Jesu Christo, ca pois elles veem de huun linhagem e sejam no quarto ou no quimto graao ou dalli açima, nom devem poer defferemça amtre ssy; e mais que os que som chegados come primos e terçeiros, ca mais nobre cousa he e mais samta amar o homem a seu paremte alomgado per divido (22), se boõ he, que amar ao mais chegado, se falleçudo (23) he. E os homeens que nom som de boo conheçer, nom fazem comta do linhagem que ajam, senam d’irmaãos e primos cõirmaãos e segundos e terçeiros; e dos quartos açima nom fazem comta. Estes taaes erram a Deus e a ssy, ca o que tem paremte no quimto ou sexto graao ou dalli açima, se he de gram poder, deve-o servir, por que vem de seu samgue; e sse he seu iguall, deve-o d’ajudar; e sse he mais pequeno que ssy, deve-lhe fazer bem, e todos devem seer de huun coraçom (24).

    A quarta, por saberem os nomes daquelles domde veem e alguunas bomdades (25) que em elles ouve.

    A quimta, por os Reys averem de conheçer aos vivos com merçees, por os mereçimentos e trabalhos e gramdes lazeiras (26) que rreceberom os seus avoos em sse guaanhar esta terra da Espanha per elles.

    A sexta, pera saberem como podem casar sem peccado, segundo os sacramentos da Samta Egreja (27).

    A septima, pera saberem de quaaes moesteiros som naturaaes (28) e bemfeitores.

    E por esta materea seer mais crara (29) e os nobres fidallgos saberem gram parte dos linhageens dos Reys e emperadores e dos feytos em breve que forom e passarom nas outras terras, do começo do mundo, hu os seus avoos forom a demamdar suas aventuyras, por que elles gaanharom nome e os que delles deçenderom, por alguunas nobrezas que aló (30) fezerom, fallaremos primeiro do linhagem dos homeens e dos Reys de Jerusalem, des Adam atá a naçença de Jesu Christo; e das comquistas que fezerom os Reis de Syria e el-Rey Faraoo e Nabucodonosor em Jerusalem. Des y fallaremos dos Reys da Troya e dos Reys de Roma e emperadores e dos Reys da Gram Bretanha, que ora se chama Ingraterra.

Portugaliae Monumenta Historica –“Scriptores”,

pp. 230-231.

Comentário

É este o prólogo do Nobiliário do Conde D. Pedro, filho de D. Denis. Foi dos livros mais lidos e consultados de toda a Espanha, sobretudo na Idade Média. Pretendeu ser uma relação verídica das famílias desde o tempo da Reconquista. Tem, pois, no que contém de verdadeiro, um alto valor histórico e social. Estes registos genealógicos foram fei­tos entre nós logo nos primeiros tempos da monarquia, por razões que D. Pedro aponta no seu prefácio, e de entre as quais sobressaem estas: 1. A necessidade de evitar casamentos entre parentes chegados, o que a Igreja condenava; só por meio de uma relação completa das famílias e sua descendência se poderiam determinar os graus de parentesco. 2. O esclarecimento de todos aqueles que tinham direitos sobre os mos­teiros, matéria muito litigiosa, pois que só os descendentes legítimos dos fundadores de um mosteiro poderiam alegar esse direito, conhecido pelo nome de “direito de padroado”. 3. A obrigação moral de os parentes se amarem uns aos outros e de terem presente a lição heróica dos antepassados na luta contra o mouro.

 

**  A sintaxe do trecho nem sempre é clara; é possível que ande estropiado.

(1). Por isso. (2). Note-se o pleonasmo da frase negativa, próprio da língua arcaica. Hoje diremos: “nenhum melhor serviço pode o homem fazer”. (3). Com todo o seu sentido, com todas as veras do seu coração. (4). Não é o pronome demonstrativo, mas uma forma arcaica do verbo seer, correspondente ao EST latino. Leia-se com vogal aberta: éste. É evidentemente a forma primitiva; é deveu-se à analogia com os outros verbos. Se se dizia amas - ama, deveria dizer-se és - é. (5). Grafia alatinada. Deveria ler-se preceito. (6). Velho Testamento. Vedra vem do lat. VETERA. Veja-se ainda hoje Torres Vedras - Torres Novas. (7). Procurar. (8). D. Pedro afiança-nos que teve de consultar muitos documentos para compor o Nobiliário. (9). Compus. D. Pedro não seria mais que o orientador geral da obra, que aliás já estava começada havia muito tempo. (10). Ainda que. (11). A menos de. A síncope do n medial em MINUS é regular. A reposição do n dever-se-ia à confusão com meos < MEDIOS. (12). Perturbarem, prejudicarem. No ms. lê-se tornarem. (13). Por desafiarem-se, com desafios. (14). Cumpre. (15). Socorram, ajudem. (16). Fraquezas. (17). Não venham a ser mal reputados. (18). Facilmente. (19). Contar, narrar. (20). Como. (21). Destruição. O prefixo es- substitui muitas vezes, na língua arcaica, o actual des: espedir, esterrar, etc. (22). Afastado. (23). Falto de virtudes. Faleçudo é o particípio regular de falecer. (24). Devem estar unidos por afeição. (25). Feitos de valor, virtudes. (26). Atribulações, canseiras. (27). Segundo o direito canónico, parentes até ao sétimo grau não podiam casar-se sem dispensação. (28). “Ser natural” dum mosteiro era o mesmo que exercer sobre ele o direito de padroado. (29). Clara. É o produto de uma assimilação. (30). Lá.