segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

PROSA MEDIEVAL - SÉCULO XIII: OS LIVROS DE LINHAGENS




 

 

PROSA MEDIEVAL – SÉCULO XIII

Os Livros de Linhagens (1282-1290), também chamados Nobiliários no século XVI, são quatro obras escritas durante a Idade Média, onde se descreve a genealogia das principais famílias nobres no reino, tanto em linha reta como colateral. São como árvores genealógicas comentadas.

O primeiro, também chamado Livro Velho e o quarto, conhecido como Nobiliário do Conde D. Pedro de Barcelos, estão completos. Dos restantes chegaram até nós apenas fragmentos (Segundo de Linhagens, ou Segundo Livro Velho, e Terceiro Livro de Linhagens, ou Nobiliário da Ajuda). O Livro do Conde D. Pedro de Barcelos é o mais desenvolvido dos quatro, tendo o autor pretendido apesentar um resumo da história universal.





Através dos Nobiliários, é-nos possível conhecer um pouco melhor o pensamento medieval.

Ainda muito importante, é o facto de estes Nobiliários ou Livros de Linhagens apresentarem as origens dos nomes de nobreza que figuravam no livro de matrícula dos reis ou das cortes, permitindo ao fidalgo, ou fidalgote (fidalgo pobre e decaído) livre acesso à casa real, aos palácios e castelos.

Os Livros de Linhagens foram publicados no século XIX por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Historica, volume dedicado aos Scriptores. Conservamos quatro Livros de Linhagens:

I.                   Livro Velho: É anónimo, conservou-se completo e é também o mais antigo. Contém uma relação de pessoas com os seus cruzamentos, descendência…Os comentários são muito breves e a prosa menos ágil do que noutros livros de linhagens.

II.                II Livro Velho: A obra mais extensa, mas que se limita à catalogação de genealogias. Não se conservou de forma completa. Introduz elementos que, desde o ponto de vista contemporâneo, são fantásticos.

III.             Nobiliário da Ajuda: Denomina-se assim porque o manuscrito esteve encadernado com o Cancioneiro da Ajuda. Também não se conservou de forma completa.

IV.             IV Livro de Linhagem ou Nobiliário do Conde D. Pedro: Contém o Nobiliário da Ajuda na íntegra. É muito mais extenso, contém mais comentários e mais pormenorizados, chegando mesmo a constituir um complemento das crónicas. Contém um prólogo do Conde D. Pedro no qual se declara quais são as intenções da obra, às que denomina sete coisas ou sete razões:

 

1.      “Criar amor e amizade entre os nobres e fidalgos de Espanha”.

2.      Dar a conhecer às famílias o tronco de que descendem e os seus parentescos.

3.      Contribuir à união de todos os fidalgos na luta contra os infiéis.

4.      Mostrar a cada fidalgo os nomes dos seus antepassados e alguns feitos dignos de memória, para criar um sentimento de orgulho.

5.      Proporcionar aos reis a possibilidade de dar reconhecimentos ou títulos pelas façanhas dos avôs dos fidalgos (à maneira póstuma).

6.      Dar a conhecer os impedimentos matrimoniais para evitar casamentos nulos e incestos.

7.      Lembrar aos nobres os direitos e obrigações que herdaram em relação aos mosteiros.

    Além disso, os Livros de Linhagens contêm textos de fundo mítico que estão intimamente relacionados, por exemplo, com as lendas das moiras encantadas, narrativas de tradição oral do norte de Portugal e País Basco, que surgem por vezes com a configuração de serpente ou de cabra. Mas há também elementos que apontam para o carácter universal destas lendas.

    Dois exemplos destacados de lendas empregadas no Nobiliário do Conde D. Pedro são

v  A lenda de Dona Marinha, que explica a origem da família dos Marinhos a partir dum ser sobrenatural, uma sereia.

v  A lenda da Dona Pé de Cabra, com a que se explica a origem da família Lopez Haro de Biscaia a partir de uma mulher que é metade humana e metade cabra.

 

      Algumas notas soltas mas não menos importantes…

ü  Os textos das lendas empregadas nos Livros de Linhagens para legitimar a importância de uma família nobre constituem registos escritos a partir da oralidade.

ü  Aquando da produção dos textos destas lendas, as cidades medievais passavam pelo processo de expansão territorial que não se cingia apenas às trocas comerciais mas que permitia, simultaneamente, influências culturais. A burguesia encontrava-se no seu melhor, fundavam-se as primeiras universidades e as entidades jurídicas. Surgiu, por isso, a necessidade de um registo confiável que pudesse ser consultado no futuro e que definisse as relações formais da época. Não é por acaso que os textos que antecederam esse período, sejam predominantemente documentos oficiais. É também importante ter em conta que os textos destas lendas eram produzidos para a elite que dominava o código escrito para além dos poderes político, económico e social da época.

 

Fonte: Internet / Manuais (adaptado)



Livro das Linhagens

Séc.XIV

Comentário de Manuel Rodrigues Lapa (1960,3ªed.). Crestomatia Arcaica. Lisboa: Textos Literários. pp.49-54

(Nota: o til é desenvolvido como n.)

LIVRO DAS LINHAGENS

Livro de Linhagens do Conde D. Pedro



PRÓLOGO

Texto

 

    Em nome de Deus, que he fonte e padre d’amor, e por que este amor nom sofre nehuuna cousa de mall, porem (1) em servi-llo de coraçom he carreyra reall, e nehuun melhor serviço nom (2) pode o homem fazer que amá-lo de todo seu sem (3) e seu proximo como ssi meesmo, por que este (4) preçepto (5) que Deus deu a Moysés na Vedra (6) Ley; porem eu, comde Dom Pedro, filho do muy nobre Rey Dom Denis, ouve de catar (7) por gram trabalho por muitas terras escripturas que fallavam dos linhageens (8). E veemdo as escripturas com grande estudo e em como fallavam doutros gramdes fectos, compuge (9) este livro por gaanhar o seu amor e por meter amor e amizade antre os nobres fidallgos da Espanha, e como quer que (10) antre elles deve aver amizade, segundo seu ordinamento antiigo, em damdo-se fé pera sse nom fazerem mall huuns aos outros, a meos (11) de torvarem (12) a este amor e amizade per desfiarem-sse (13).

    Esto diz Aristótilles: que sse homeens ouvessem antre ssy amizade verdadeira, nom averiam mester reys nem justiças, ca amizade os faria viver seguramente eno serviço de Deus. E a todollos homeens, rricos e pobres, compre (14) amizade. E aos que som meninos ham mester quem os crii e emssine; e sse ssom mançebos ham mester quem nos comselhe, pera fazer sas cousas seguramente; e sse forem velhos, ham mester que lhes acorram (15) aos seus desfalliçimentos (16).

    E os amigos verdadeiros devem-sse guardar em sas pallavras de dizer cousa per que seus amigos nom venham a fama (17) ou a mall, ca per hi se desataria a amizade. E nom se devem mover a crer de ligeiro (18) as cousas que lhes delles digam de mall, e devem-sse guardar segredos e nom devem retraer (19) as obras que sse fezerom.

    E por que nenhuuna amizade nom pode seer tam pura, segumdo natura, come (20) daquelles que desçemdem de huun sangue, por que estes movem-sse mais de ligeiro aas cousas por omde sse mantem, ouve de declarar este Livro per titollos e per allegaçoões, que cada huun fidallgo de ligeiro esto podesse saber, e esta amizade fosse descuberta e nom se perdesse amtre aquelles que a deviam aver. E o que me a esto moveo forom sete cousas:

    A primeira, pera sse comprir e guardar este preçepto de que primeiro fallamos.

    A segunda, he por saberem estes fidallgos de quaes desçenderam de padre a filho e das linhas travessas.

    A terçeyra, por seerem de huun coraçom de averem de seguir os seus emmiigos, que som em estroïmento (21) da fe de Jesu Christo, ca pois elles veem de huun linhagem e sejam no quarto ou no quimto graao ou dalli açima, nom devem poer defferemça amtre ssy; e mais que os que som chegados come primos e terçeiros, ca mais nobre cousa he e mais samta amar o homem a seu paremte alomgado per divido (22), se boõ he, que amar ao mais chegado, se falleçudo (23) he. E os homeens que nom som de boo conheçer, nom fazem comta do linhagem que ajam, senam d’irmaãos e primos cõirmaãos e segundos e terçeiros; e dos quartos açima nom fazem comta. Estes taaes erram a Deus e a ssy, ca o que tem paremte no quimto ou sexto graao ou dalli açima, se he de gram poder, deve-o servir, por que vem de seu samgue; e sse he seu iguall, deve-o d’ajudar; e sse he mais pequeno que ssy, deve-lhe fazer bem, e todos devem seer de huun coraçom (24).

    A quarta, por saberem os nomes daquelles domde veem e alguunas bomdades (25) que em elles ouve.

    A quimta, por os Reys averem de conheçer aos vivos com merçees, por os mereçimentos e trabalhos e gramdes lazeiras (26) que rreceberom os seus avoos em sse guaanhar esta terra da Espanha per elles.

    A sexta, pera saberem como podem casar sem peccado, segundo os sacramentos da Samta Egreja (27).

    A septima, pera saberem de quaaes moesteiros som naturaaes (28) e bemfeitores.

    E por esta materea seer mais crara (29) e os nobres fidallgos saberem gram parte dos linhageens dos Reys e emperadores e dos feytos em breve que forom e passarom nas outras terras, do começo do mundo, hu os seus avoos forom a demamdar suas aventuyras, por que elles gaanharom nome e os que delles deçenderom, por alguunas nobrezas que aló (30) fezerom, fallaremos primeiro do linhagem dos homeens e dos Reys de Jerusalem, des Adam atá a naçença de Jesu Christo; e das comquistas que fezerom os Reis de Syria e el-Rey Faraoo e Nabucodonosor em Jerusalem. Des y fallaremos dos Reys da Troya e dos Reys de Roma e emperadores e dos Reys da Gram Bretanha, que ora se chama Ingraterra.

Portugaliae Monumenta Historica –“Scriptores”,

pp. 230-231.

Comentário

É este o prólogo do Nobiliário do Conde D. Pedro, filho de D. Denis. Foi dos livros mais lidos e consultados de toda a Espanha, sobretudo na Idade Média. Pretendeu ser uma relação verídica das famílias desde o tempo da Reconquista. Tem, pois, no que contém de verdadeiro, um alto valor histórico e social. Estes registos genealógicos foram fei­tos entre nós logo nos primeiros tempos da monarquia, por razões que D. Pedro aponta no seu prefácio, e de entre as quais sobressaem estas: 1. A necessidade de evitar casamentos entre parentes chegados, o que a Igreja condenava; só por meio de uma relação completa das famílias e sua descendência se poderiam determinar os graus de parentesco. 2. O esclarecimento de todos aqueles que tinham direitos sobre os mos­teiros, matéria muito litigiosa, pois que só os descendentes legítimos dos fundadores de um mosteiro poderiam alegar esse direito, conhecido pelo nome de “direito de padroado”. 3. A obrigação moral de os parentes se amarem uns aos outros e de terem presente a lição heróica dos antepassados na luta contra o mouro.

 

**  A sintaxe do trecho nem sempre é clara; é possível que ande estropiado.

(1). Por isso. (2). Note-se o pleonasmo da frase negativa, próprio da língua arcaica. Hoje diremos: “nenhum melhor serviço pode o homem fazer”. (3). Com todo o seu sentido, com todas as veras do seu coração. (4). Não é o pronome demonstrativo, mas uma forma arcaica do verbo seer, correspondente ao EST latino. Leia-se com vogal aberta: éste. É evidentemente a forma primitiva; é deveu-se à analogia com os outros verbos. Se se dizia amas - ama, deveria dizer-se és - é. (5). Grafia alatinada. Deveria ler-se preceito. (6). Velho Testamento. Vedra vem do lat. VETERA. Veja-se ainda hoje Torres Vedras - Torres Novas. (7). Procurar. (8). D. Pedro afiança-nos que teve de consultar muitos documentos para compor o Nobiliário. (9). Compus. D. Pedro não seria mais que o orientador geral da obra, que aliás já estava começada havia muito tempo. (10). Ainda que. (11). A menos de. A síncope do n medial em MINUS é regular. A reposição do n dever-se-ia à confusão com meos < MEDIOS. (12). Perturbarem, prejudicarem. No ms. lê-se tornarem. (13). Por desafiarem-se, com desafios. (14). Cumpre. (15). Socorram, ajudem. (16). Fraquezas. (17). Não venham a ser mal reputados. (18). Facilmente. (19). Contar, narrar. (20). Como. (21). Destruição. O prefixo es- substitui muitas vezes, na língua arcaica, o actual des: espedir, esterrar, etc. (22). Afastado. (23). Falto de virtudes. Faleçudo é o particípio regular de falecer. (24). Devem estar unidos por afeição. (25). Feitos de valor, virtudes. (26). Atribulações, canseiras. (27). Segundo o direito canónico, parentes até ao sétimo grau não podiam casar-se sem dispensação. (28). “Ser natural” dum mosteiro era o mesmo que exercer sobre ele o direito de padroado. (29). Clara. É o produto de uma assimilação. (30). Lá.

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