quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

FARSA DE INÊS PEREIRA, GIL VICENTE - CONTEXTUALIZAÇÃO I




APONTAMENTOS…


O MOMENTO HISTÓRICO

O Portugal do século XVI é uma nação rica em conquistas ultramarinas, mas deficiente em produção agrícola e manufatureira. Para conseguir abastecer-se internamente a única saída é trazer ouro e prata das viagens além-mar. A crise económica gera um descontentamento que ameaça os antigos valores, dissolvendo a aliança entre clero e nobreza, entre mercadores e soberanos. Essa crise é retratada na obra de Gil Vicente pelas personagens que buscam enriquecer a qualquer preço, aproveitando a situação caótica do país.


EUROPA vs PORTUGAL

Em toda a Europa, o século XVI é o momento de ascensão da burguesia, valorização da ciência e do homem e questionamento da Igreja, com a Reforma protestante. Em Portugal, entretanto, desenvolve-se um humanismo um pouco diferente: as ciências são valorizadas, mas o poder da Igreja e da nobreza não é questionado. Muito pelo contrário: a Inquisição e a Companhia de Jesus são os principais instrumentos da Contrarreforma, que chega para reprimir a cultura humanista proporcionada pelo contato com outras culturas, decorrente dos descobrimentos.


RELIGIOSIDADE E REFORMISMO

Gil Vicente vive numa época de transição de valores: os ideais medievais chocam-se com a realidade renascentista o que se pode verificar na sua obra. Critica os maus padres, mas poupa a Igreja; critica os maus nobres, mas não questiona o poder real. Os valores medievais são representados pela forte religiosidade, pela instituição da Igreja, pelos dogmas da fé. Por outro lado, o espírito reformista aparece na crítica aos padres que têm uma vida desregrada e exploram a ingenuidade dos crentes para manipulá-los. Um exemplo disso é o sermão em que Gil Vicente procura explicar racionalmente as causas do terramoto ocorrido em Lisboa, enquanto os padres diziam que era a ira de Deus manifestando-se contra a falta de fé dos cristãos-novos – os judeus convertidos ao cristianismo para escaparem à Inquisição.  Ao transpor momentos da vida social para o teatro, as peças vicentinas conquistam o público pela simplicidade com que mostram as falhas humanas, para que as pessoas se possam corrigir e receber as bênçãos da vida eterna. As peças conquistam o público pela simplicidade e divertem ao mesmo tempo que ensinam.


 IMPORTANTE!

Gil Vicente é importante na literatura portuguesa não só por fazer um retrato da sociedade de seu tempo, mas principalmente por abordar a vida do homem na sua totalidade, desde os problemas domésticos mais corriqueiros até aos mais complicados conflitos morais.

 

O GÉNERO

Gil Vicente é um artista medieval escrevendo em plena Renascença, momento em que as próprias estruturas da arte se encontravam em transformação. O auto, género muito popular até então, caracterizava-se pelo conteúdo simbólico: os atores representavam entidades abstratas de caráter religioso ou moral, como o pecado, a hipocrisia, a luxúria, a avareza, a virtude, a bondade etc. Embora a Farsa de Inês Pereira tenha sido publicada primeiramente como Auto de Inês Pereira, o conteúdo da peça não corresponde às exigências do auto. Gil Vicente criou um novo género para o qual não havia um nome na época, a farsa.

 

IMPORTANTE!

A farsa é um tipo de encenação teatral curta que explora situações engraçadas da vida quotidiana, apelando para a caricatura e os exageros, a fim de provocar o riso no espetador mas, ao contrário da comédia, não tem um fundo moralizante.


CRÍTICA SOCIAL NA FARSA DE INÊS PEREIRA

A Farsa de Inês Pereira possui, como tantas outras obras de Gil Vicente, uma componente marcada de crítica a tipos sociais. Destaque-se a jovem casadoira, figura que entre os séculos XVI e XXI terá apenas sofrido pequenas alterações, ao nível da cosmética. Assim também sucede com o príncipe encantado (o Escudeiro), com a Mãe, com Pêro Marques, enfim, toda a galeria de personagens, que correspondem a tipologias sociais com equivalentes na atualidade. O tom de farsa serve perfeitamente os objetivos imanentes à crítica. O riso é uma forma de criticar e de caricaturar costumes. Daí decorre um outro vetor a sublinhar nesta peça: o cómico de situação, um provocador do riso com o qual se castigam os costumes. Assim, por exemplo, a incompreensão entre Mãe e filha tipifica o conflito de gerações, tão velho como a história da humanidade. Atente-se ainda na crítica à irreflexão da juventude que assume decisões vitais, por vezes, de modo fundamentalista. Não esqueçamos, finalmente, a crítica social aos três casamenteiros Leonor, Latão e Vidal, bem-humorada, mas impiedosa quanto à análise do motivo que fundamenta a sua atividade: o vil metal.


ESTILO NA FARSA DE INÊS PEREIRA

Escrita em verso, a Farsa de Inês Pereira incorpora trocadilhos, ditos populares e expressões típicas de cada classe social. Gil Vicente nesta farsa lança mão a diferentes recursos linguísticos que formam o estilo da farsa.

Ironia - A ironia é utilizada na peça como instrumento de crítica social e como motivadora do riso. Ela aparece sob diversas formas, quer seja através de palavras expressando o seu sentido contrário, quer jogando com o duplo sentido ou ainda acentuando a desproporção entre uma ação e a sua finalidade.

Eis alguns exemplos "Mãe: Mana, conhecia-te ele?

Lianor: Mas, queria conhecer-me!" 

Aqui, o efeito cómico surge a partir de uma construção de duplo sentido do verbo conhecer: saber e relacionamento sexual.

"Inês: Mostrai cá, meu guarda-mor, e veremos o que é que vem."

É uma fala de Inês Pereira dirigida ao Moço tratando-o por guarda-mor. Guarda--Mor era um tipo de tratamento que era, então, dispensado aos fidalgos da Guarda real. Inês joga com a desproporção entre a denominação que lhe dá e a real condição do Moço.

Cantigas - Resumem ou comentam a ação ou exprimem o estado de espírito de quem as canta.

"Mal herida va la garça enamorada..."

Esta cantiga aparece no casamento de Inês com Brás da Mata e é cantada pelos seus amigos. Cumpre a função de resumir os acontecimentos e tem o dom de previsão do futuro, graças ao simbolismo da garça que representa Inês, caminhando sozinha e triste, depois de um Escudeiro lhe destruir os ideais. Há várias referências a cantigas nesta farsa, eis alguns exemplos:

"Canta o Judeu, Canas de amor, canas de amor...";

“Canta o Escudeiro o romance, Mal me quieren en Castilla...”

O canto, a dança e a música desempenham em Gil Vicente a função de instrumentos para a análise da sociedade da época.

O modo de falar das personagens é o principal recurso vicentino. Assume o papel de mostrar a oposição entre os mais elevados valores morais e os novos valores materialistas. A oposição entre o mundo de ideais de Inês e o discurso de conveniência protagonizado pela mãe.

Inês utiliza palavras ligadas à diversão; "folgar", "prazer", enquanto a Mãe faz recurso a um vocabulário que exprime obrigação: "tarefa", "preguiçosa".

O modo de falar de Pêro Marques evidencia o seu carácter simplório.

No outro extremo, temos as falas do Escudeiro que, apesar de dar azo a belas palavras, revela-se um mau carácter. Temos, então, o modo de falar ao serviço do jogo de contrastes entre a aparência e a essência (o ser).

 
Fonte: net (adaptado)
 

Sem comentários:

Enviar um comentário

COMENTE, SUGIRA, PERGUNTE, OPINE...