APONTAMENTOS…
O MOMENTO HISTÓRICO
O Portugal do século
XVI é uma nação rica em conquistas ultramarinas, mas deficiente em produção
agrícola e manufatureira. Para conseguir abastecer-se internamente a única
saída é trazer ouro e prata das viagens além-mar. A crise económica gera um
descontentamento que ameaça os antigos valores, dissolvendo a aliança entre
clero e nobreza, entre mercadores e soberanos. Essa crise é retratada na obra
de Gil Vicente pelas personagens que buscam enriquecer a qualquer preço,
aproveitando a situação caótica do país.
EUROPA vs PORTUGAL
Em toda a Europa, o
século XVI é o momento de ascensão da burguesia, valorização da ciência e do
homem e questionamento da Igreja, com a Reforma protestante. Em Portugal,
entretanto, desenvolve-se um humanismo um pouco diferente: as ciências são
valorizadas, mas o poder da Igreja e da nobreza não é questionado. Muito pelo
contrário: a Inquisição e a Companhia de Jesus são os principais instrumentos
da Contrarreforma, que chega para reprimir a cultura humanista proporcionada
pelo contato com outras culturas, decorrente dos descobrimentos.
RELIGIOSIDADE E
REFORMISMO
Gil Vicente vive numa
época de transição de valores: os ideais medievais chocam-se com a realidade
renascentista o que se pode verificar na sua obra. Critica os maus padres, mas
poupa a Igreja; critica os maus nobres, mas não questiona o poder real. Os
valores medievais são representados pela forte religiosidade, pela instituição
da Igreja, pelos dogmas da fé. Por outro lado, o espírito reformista aparece na
crítica aos padres que têm uma vida desregrada e exploram a ingenuidade dos
crentes para manipulá-los. Um exemplo disso é o sermão em que Gil Vicente
procura explicar racionalmente as causas do terramoto ocorrido em Lisboa,
enquanto os padres diziam que era a ira de Deus manifestando-se contra a falta
de fé dos cristãos-novos – os judeus convertidos ao cristianismo para escaparem
à Inquisição. Ao transpor momentos da vida social para o teatro, as
peças vicentinas conquistam o público pela simplicidade com que mostram as
falhas humanas, para que as pessoas se possam corrigir e receber as bênçãos da
vida eterna. As peças conquistam o público pela simplicidade e divertem ao
mesmo tempo que ensinam.
IMPORTANTE!
Gil Vicente é
importante na literatura portuguesa não só por fazer um retrato da sociedade de
seu tempo, mas principalmente por abordar a vida do homem na sua totalidade,
desde os problemas domésticos mais corriqueiros até aos mais complicados
conflitos morais.
O GÉNERO
Gil Vicente é um
artista medieval escrevendo em plena Renascença, momento em que as próprias
estruturas da arte se encontravam em transformação. O auto, género muito
popular até então, caracterizava-se pelo conteúdo simbólico: os atores representavam
entidades abstratas de caráter religioso ou moral, como o pecado, a hipocrisia,
a luxúria, a avareza, a virtude, a bondade etc. Embora a Farsa de Inês Pereira tenha sido
publicada primeiramente como Auto de
Inês Pereira, o conteúdo da peça não corresponde às exigências do auto. Gil
Vicente criou um novo género para o qual não havia um nome na época, a farsa.
IMPORTANTE!
A farsa é um tipo de
encenação teatral curta que explora situações engraçadas da vida quotidiana, apelando
para a caricatura e os exageros, a fim de provocar o riso no espetador mas, ao
contrário da comédia, não tem um fundo moralizante.
CRÍTICA
SOCIAL NA FARSA DE INÊS PEREIRA
A Farsa de Inês Pereira
possui, como tantas outras obras de Gil Vicente, uma componente marcada de
crítica a tipos sociais. Destaque-se a jovem casadoira, figura que entre os
séculos XVI e XXI terá apenas sofrido pequenas alterações, ao nível da
cosmética. Assim também sucede com o príncipe encantado (o Escudeiro), com a
Mãe, com Pêro Marques, enfim, toda a galeria de personagens, que correspondem a
tipologias sociais com equivalentes na atualidade. O tom de farsa serve
perfeitamente os objetivos imanentes à crítica. O riso é uma forma de criticar
e de caricaturar costumes. Daí decorre um outro vetor a sublinhar nesta peça: o
cómico de situação, um provocador do riso com o qual se castigam os costumes.
Assim, por exemplo, a incompreensão entre Mãe e filha tipifica o conflito de
gerações, tão velho como a história da humanidade. Atente-se ainda na crítica à
irreflexão da juventude que assume decisões vitais, por vezes, de modo
fundamentalista. Não esqueçamos, finalmente, a crítica social aos três
casamenteiros Leonor, Latão e Vidal, bem-humorada, mas impiedosa quanto à
análise do motivo que fundamenta a sua atividade: o vil metal.
ESTILO
NA FARSA DE INÊS PEREIRA
Escrita em verso, a
Farsa de Inês Pereira incorpora trocadilhos, ditos populares e expressões
típicas de cada classe social. Gil Vicente nesta farsa lança mão a diferentes
recursos linguísticos que formam o estilo da farsa.
Ironia
- A ironia é utilizada na peça como instrumento de crítica social e como
motivadora do riso. Ela aparece sob diversas formas, quer seja através de
palavras expressando o seu sentido contrário, quer jogando com o duplo sentido
ou ainda acentuando a desproporção entre uma ação e a sua finalidade.
Eis alguns exemplos
"Mãe: Mana, conhecia-te ele?
Lianor: Mas, queria
conhecer-me!"
Aqui, o efeito cómico
surge a partir de uma construção de duplo sentido do verbo conhecer: saber e
relacionamento sexual.
"Inês: Mostrai cá,
meu guarda-mor, e veremos o que é que vem."
É uma fala de Inês
Pereira dirigida ao Moço tratando-o por guarda-mor. Guarda--Mor era um tipo de
tratamento que era, então, dispensado aos fidalgos da Guarda real. Inês joga
com a desproporção entre a denominação que lhe dá e a real condição do Moço.
Cantigas
- Resumem ou comentam a ação ou exprimem o estado de espírito de quem as canta.
"Mal herida va la
garça enamorada..."
Esta cantiga aparece no
casamento de Inês com Brás da Mata e é cantada pelos seus amigos. Cumpre a
função de resumir os acontecimentos e tem o dom de previsão do futuro, graças
ao simbolismo da garça que representa Inês, caminhando sozinha e triste, depois
de um Escudeiro lhe destruir os ideais. Há várias referências a cantigas nesta
farsa, eis alguns exemplos:
"Canta o Judeu,
Canas de amor, canas de amor...";
“Canta o Escudeiro o
romance, Mal me quieren en Castilla...”
O canto, a dança e a
música desempenham em Gil Vicente a função de instrumentos para a análise da
sociedade da época.
O modo de falar das
personagens é o principal recurso vicentino. Assume o papel de mostrar a
oposição entre os mais elevados valores morais e os novos valores materialistas.
A oposição entre o mundo de ideais de Inês e o discurso de conveniência
protagonizado pela mãe.
Inês utiliza palavras
ligadas à diversão; "folgar", "prazer", enquanto a Mãe faz
recurso a um vocabulário que exprime obrigação: "tarefa",
"preguiçosa".
O modo de falar de Pêro
Marques evidencia o seu carácter simplório.
No outro extremo, temos
as falas do Escudeiro que, apesar de dar azo a belas palavras, revela-se um mau
carácter. Temos, então, o modo de falar ao serviço do jogo de contrastes entre
a aparência e a essência (o ser).
Fonte: net (adaptado)
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