quinta-feira, 20 de setembro de 2018

FERNANDO PESSOA E HETERONÍMIA - APONTAMENTOS / NOTAS SOLTAS



APONTAMENTOS / NOTAS SOLTAS



TEXTO INICIAL…

A melhor proposta para a explicação da heteronímia é-nos dada pelo próprio F. Pessoa quando escreveu “o ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro – eis tudo.”
Na verdade, o poeta tem a capacidade de”voar outro”, ou seja, é capaz de construir pessoas inexistentes que sentem, como as pessoas reais, sensações e emoções ainda que diferentes das do seu criador. Este processo assemelha-se ao do ator quando representa as suas personagens, estando na sua origem a capacidade de se despersonalizar.
Pessoa transforma esta despersonalização dramática num modo de criação literária muito bem conseguido, em que cada personagem difere do seu criador, representando uma espécie de drama. Quando estão juntas, estas personagens formam um outro tipo de drama: o drama em gente.

NOTAS SOLTAS

É o profundo autoconhecimento de Pessoa que o leva a desejar ser outro, “Ser outro constantemente” revelando o “eu” fragmentado e revelando o drama de personalidade que o leva à dispersão do real e de si mesmo.
O poeta possui uma grande capacidade de despersonalização “Quantos sou?” e é na heteronímia – cria diferentes personalidades – que Pessoa encontra a possibilidade de exprimir estados de alma e consciência distintos.
Este processo de despersonalização faz dele um ser plural, em que pensar e sentir se harmonizam e assim melhor expressarem a apreensão da vida, do ser e do mundo, permitindo “sentir tudo de todas as maneiras”.
“’Por a alma não ter raízes’, Fernando Pessoa  pretende “viajar” no seu próprio ser, submetendo-se ao processo de outração, de modo a experienciar todas as possibilidades do “eu”. Indivíduo singular, Pessoa apresenta-se “múltiplo”, querendo exprimir o todo e abarcar a totalidade. É a fragmentação que lhe permite, então, ser “variamente outro” e alcançar a unidade.”
A fragmentação do “eu” pessoano resulta da constante procura de respostas para o enigma do ser, aliada à perda de identidade.
Pessoa vê-se confrontado com a sua pluralidade, ou seja, com diferentes “eu”, sem saber quem é nem se realmente existe. O “eu” nega-se como um todo.
Refere o “eu” lírico “Multipliquei-me, para me sentir”, encontrando, assim, a salvação na fragmentação, na vida inventada, em que cada um dos seus heterónimos exprime um novo modo de ser e uma visão própria do mundo.
Despersonalizando-se, o ”eu” desaparece, fazendo surgir a persona, isto é, a máscara.
No interior do poeta encontram-se vários “eu”. Enquanto ser múltiplo, Pessoa não consegue encontrar-se nem definir-se em nenhum deles, sendo incapaz de se reconhecer a si próprio – é um mero observador de si mesmo. Sofre a vida sendo incapaz de a viver.
No poema “Não sei quantas almas tenho”, o sujeito poético confessa a sua fragmentação em múltiplos “eu”, revelando a sua dor de pensar e a intelectualização do sentir. É esta última que o conduz através de um processo constante de autoanálise. Em dúvida e indefinido quanto à sua identidade, angustiado pelo autoconhecimento – “Por isso, alheio, vou lendo / como páginas meu ser” – é incapaz de viver a vida, mergulhando no tédio e na angústia existenciais.
Será através da fragmentação do “eu” que Fernando Pessoa tenta encontrar a totalidade de forma a conciliar o ato de pensar e o do sentir.