quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

ANÁLISE DE MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES, CAMÕES


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.


Luís de Camões




TEMA: reflexão sobre a questão da mudança, um tema frequente na Renascença [tempus fugit]. A justificá-lo, o recurso a palavras da família de mudar.
O texto constrói-se com base nesta ideia, reforçada por outras que apontam na mesma direção, "novas" e "novidades".
Aliada a esta mesma ideia uma outra, a da passagem do Tempo, igualmente muito importante em Camões, à qual ninguém escapa e de que são todos vítimas; mesmo as estações do ano estão sujeitas à passagem deste Tempo.
Na 1ª quadra, o sujeito poético refere que as pessoas mudam e que, por isso, os interesses e os sentimentos também evoluem. A forma de ser, a personalidade alteram-se assim como a confiança em si próprio e nos outros.
A iniciar a segunda quadra, o advérbio Continuamente reforçando esta ideia de que a mudança ininterrupta do mundo não se controla e que as mudanças são, normalmente, para pior. As mudanças, a acontecerem são sempre diferentes do que se esperava; das más, ficam as mágoas na memória e das boas, as saudades.

Tercetos...

Nos tercetos salienta-se a seguinte oposição: na Natureza, tudo se renova mas no Homem as mudanças são irreversíveis, sem retorno.

Após a descrição de uma série de mudanças ocorridas numa realidade ao nível dos sentimentos, partimos para a alteração que se verifica ao nível físico, a que ocorre na Natureza, e que sendo inicialmente para melhor, é depois classificada como tendo sido para pior.

No 2º terceto, 1º verso, retoma-se a ideia desta mudança contínua e incontornável já expressa pelo advérbio da 2ª quadra, Continuamente. O sujeito revela o seu espanto pelo facto de já não se reconhecer no que vai mudando pois a própria mudança está a mudar...








ANÁLISE DE UM MOVER D'OLHOS BRANDO E PIADOSO, CAMÕES

Influência Renascentista
Um mover d’olhos brando e piadoso,
Sem ver de quê ; um riso brando e honesto,
quási forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;
Um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
ũa pura bondade, manifesto
indício de alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar; ũa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste formosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.
Luís de Camões



Soneto, medida nova, de influência renascentista.
TEMA: retrata-se a mulher amada cuja Beleza é dominada pelos sentimentos, pela caracterização de ordem moral e psicológica. Nesta mesma caracterização sente-se a influência direta de Petrarca no que se refere ao elogio dos aspetos físicos, nomeadamente, olhar, riso, gesto… o sujeito poético faz esta análise em contemplação tal como preconiza Petrarca…
A comprovar estas considerações atente-se nas estrutura das estrofes em que predominam – ou dominam J - as frases nominais, isto é, sem verbos, e em que se fazem referências às qualidades morais da amada, através da utilização de substantivos abstratos ( carácter misterioso da fig. feminina***). Também aqui assistimos à influência do modelo camoniano, Petrarca…
A construção é feita com base em paralelismos, onde o vocabulário se repete quer devido à estrutura das frases em si quer à seleção de sinónimos (a tal repetição mas aqui de significados).
Destas técnicas resulta, diríamos, uma descrição um tanto ou quanto distante dada a enumeração em que a mesma assenta, sem que o sujeito poético dê qualquer informação mais específica ou “personalizada” acerca desta figura feminina. Ele mantém-na rodeada de uma auréola de mistério e calma durante as duas quadras e o primeiro terceto.
Após este momento, dá-se um corte com a passagem para o segundo terceto.
A auréola desfaz-se um pouco com a aproximação sugerida pelo demonstrativo “Esta” e pela expressão “celeste formusura”. O eu reconhece a superioridade daquela mulher relativamente a si próprio, a quem classifica como celeste e formosa, englobando assim dois domínios no que a ela se refere, um espiritual e outro material.
Já no segundo verso, compara-a a Circe, feiticeira, possuidora de mágico veneno [metáfora] que o transformou – e uma vez que a finalidade é mesmo essa, a de transformar o “pensamento” ou seja, o sentimento do eu… em amor, entenda-se. E, assim, o véu do mistério ergue-se um pouco mais quando se define qual a relação daquela mulher com o sujeito poético.
No entanto, acresce dizer, esta dama não é como Circe visto a sua Beleza ser de ordem moral e é nesse sentido que a transformação do eu ocorre.
·         O fim da enumeração coincide com a introdução do pronome demonstrativo “Esta” que é, aliás, o sujeito da primeira e única frase verbal que ocupa todo o terceto e que conclui / explicita o objeto – amada/Circe (realidade mitológica) - do discurso anterior ----------------[1º e 2º momentos, respetivamente].
·         A presença dos indefinidos “Um” e “ua” e a predominância de adjetivos – veja-se a dupla adjetivação a classificar cada um dos nomes - reforçam a ideia de abstração referida anteriormente relativamente aos substantivos.
·         Todos os elementos que se encontram ao longo do texto estão sintetizados e valorizados no 2º terceto ou chave de ouro e que conduzem à transformação daquele que ama.
·         A beleza desta mulher é divina por oposição à da feiticeira Circe, infernal ou diabólica, porque está ligada à sua beleza enquanto que a desta dama está ligada aos aspetos morais. Na verdade, ambas têm o mesmo efeito sobre o poeta uma vez que lhe transformam o pensamento, fazendo-o descer do plano do amor ideal; ela enfeitiça-o, tal como Circe [ver].
·         A figura feminina deste texto corresponde ao retrato clássico de mulher: traços físicos e psicológicos marcados pelo equilíbrio e serenidade de um carácter superior e de beleza celestial.
·         Características petrarquistas mais significativas: - divinização da mulher (carácter superior, beleza celestial); - gosto pelo jogo antitético; - amor espiritual versus amor carnal = CIRCE: celeste formusura, mágico veneno, contemplação e desejo, deusa e mulher.
·         Neste texto, tal como em Endechas a uma bárbora escrava, o sujeito poético evidencia a sua relação com a mulher, com a única diferença de que lá utiliza o presente e aqui, o passado. Esta diferença leva-nos a concluir que o eu já não se encontra com esta mulher, não há presença física = relação platónica.
·         Circe – figura mitológica grega; representa a sedução amorosa, feiticeira que deu a beber aos companheiros de Ulisses a bebida que os transformou em porcos, impedindo Ulisses de partir no desejo de que ele fosse só seu.
·         despejo – compostura natural; quieto e vergonhoso – suave e tímido; um encolhido ousar – timidez;  obediente – submissão, mansidão;


ANÁLISE DE PERDIGÃO PERDEU A PENA, CAMÕES

1.      Na linha da temática palaciana
 Mote
Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha.
Voltas
Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
Perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas, com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.
Quis voar a uma alta torre
mas achou-se desasado
e, vendo-se depenado
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha.
Luís de Camões
TEMA: O Amor [não correspondido: o assunto]
O tom que se evidencia do poema é espirituoso devido, sobretudo, ao jogo de palavras, ou trocadilho, com a palavra “pena”. Este jogo desenrola-se entre o significado e o significante (polissemia) considerando as virtualidades semânticas do vocábulo “pena”
Pena do voar = sonho
Pena do tormento = realidade
Pena do escrever = escrita
O drama íntimo latente no verso não há mal que lhe não venha. passa a drama universal: não há mal que venha só e assim, um quadro simples conduz a uma ideia universal.
Versos 1 e 2 e 8 – o pensamento [sonho] elevou o perdigão a um alto lugar que, como consequência da sua ambição, perdeu a pena do voar.
Nas duas voltas são os seguintes os elementos associados à ideia de sonho… O mesmo, mas agora para a ideia de realidade
O eu poético constata que a realidade prevalece e que se resume à ideia de que o sonho alimentado era impossível - Perde a pena do voar, - e que a dor que o reconhecimento traz consigo, ganha … ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas, com que se sustenha:
= o “eu” já não pode sonhar nem pode lamentar a sua sorte porque “alto lugar” e “alta torre” remetem para a ideia de um amor inatingível.
O eu poético escreve sobre a sua dor o que aviva a memória do que aconteceu aumentando, assim, o seu sofrimento.
Tal como Ícaro, o eu poético paga o preço da sua ambição desmedida. As asas com que sonha são, como as do herói grego, demasiado frágeis para a sua ousadia, pelo que a queda e o sofrimento seriam inevitáveis.
A falta da pena de voar traz-lhe a presença da pena castigo e da pena sofrimento e que mais aumenta quanto maior for a queixa. (adaptado)
O ato de escrever representado pela pena, utensílio de escrita, alia-se a essa outra pena, a do sofrimento, … mas se o poeta não voa, se perde a pena que representa o sonho, então resta-lhe sentir, receber todos os sofrimentos e morrer depenado.
** Vilancete, mote de 2 versos e voltas de 7 versos
Métrica - redondilha maior
Rima ABBAACC - interpolada em A; emparelhada em B, A e C.
*** antítese/trocadilho - Perde a pena / ganha a pena
**** Perdigão/ Perdiz - em muitas culturas é símbolo do apelo do amor, da mulher mas que, na tradição cristã, representa a tentação e a perdição.
~*~   do tormento - do Amor; desasado - sem membro, companhia; depenado - sofrimento.


ANÁLISE DE VERDES SÃO OS CAMPOS, CAMÕES

 
Mote alheio
Verdes são os campos
da cor do limão:
assi são os olhos
do meu coração.
Voltas suas
Campo, que te estendes
com verdura bela;
ovelhas, que nela
vosso pasto tendes,
d’ervas vos mantendes
que traz o verão,
e eu das lembranças
do meu coração.
Gado que pasceis
co contentamento,
vosso mantimento
não o entendeis;
isso que comeis
não são ervas, não:
São graças dos olhos
do meu coração.
Luís de Camões

paceis – pastais
TEMÁTICA: Os olhos verdes da mulher amada.

·         Expressão da “vassalagem amorosa”

·         Cenário bucólico – 1º, serve de comparação com o estado de espírito saudoso do Poeta;  2º, identifica-se com a própria beleza da amada ausente.
os anteriores

·         Provoca saudades e lembranças no sujeito poético; (1º)
·         Provoca alegria e “contentamento” na Natureza. (2º)
·         Confidentes do Poeta – Campo e Gado (Apóstrofe e Vocativo)

·         do meu coração. – é o mesmo que da minha amada.
·         1ª Volta – como o gado (ovelhas) se alimenta dos prados, ele alimenta-se das memórias da sua amada.
·         2ª Volta – o mantimento do gado não são ervas mas o verde dos olhos da amada.
·         As belezas da amada não são acidentes da Natureza, atributos físicos com que a Natureza a beneficiasse; antes é a dama que distribui pela Natureza essa mesma beleza… dir-se-ia que a Natureza é bela na medida em que participa das belezas da senhora.
·          Estamos em presença de uma cantiga - mote de 4 versos (quadra) e voltas de 8 versos (oitavas).
·         Mote – rima cruzada e dois versos soltos ou brancos: ABCB
·         Volta 1 – DEEDDBFB – rima interpolada, emparelhada, cruzada e um verso solto ou branco.
·         tendes / mantendes – rima consoante ou perfeita.
·         Versos pentassílabos ou de redondilha menor (5 sílabas).
·         … co contentamento, - personificação (atribuição de reações; sentimentos próprios dos humanos).

ANÁLISE DE PASTORA DA SERRA, CANTIGA ALHEIA, CAMÕES





CANTIGA ALHEIA

Pastora da serra,
da serra da Estrela,
perco-me por ela.



Voltas


Nos seus
olhos belos
tanto Amor se atreve
que abrasa entre a neve

quantos ousam vê-los.
Não solta os cabelos
Aurora mais bela:
perco-me por ela.

Não teve esta serra,
no meio da altura,
mais que a
fermosura

que nela se encerra.
Bem céu fica a terra
que tem tal estrela:
perco-me por ela.

Sendo entre pastores
causa de mil males,
não se ouvem nos vales
senão seus louvores.
Eu só por amores
não sei falar nela:
sei morrer por ela.

De alguns que, sentindo,
seu mal vão mostrando,
se ri,
não cuidando
que inda paga, rindo.
Eu, triste, encobrindo
só meus males dela
,
perco-me por ela.

Se flores deseja,
(por ventura delas)
das que colhe, belas,
mil morrem de enveja.
Não há quem não veja
todo o milhor nela:
perco-me por ela.

Se na água corrente
seus olhos inclina,
faz luz cristalina
parar a corrente.
Tal se vê que sente
por ver-se água nela:
perco-me por ela.

Luís de Camões

Com esta influência [a de Petrarca] conjuga-se a da poesia provençal e a do romance cortês, no conceito de mulher como ser superior, de natureza divina, que o amante contempla e venera, e no tema do amor-paixão e no da morte por amor.

Isabel Pascoal, “A poesia lírica”

in Lírica de Luís de Camões.

Temática – A paixão amorosa provocada pela beleza de uma pastora.

** Aproveitamento original dos temas das pastorelas e barcarolas – tendências petrarquizantes aliadas a nova fluência rítmica.

*** A Dama é idealizada como pastora e situada num cenário bucólico – locus amoenus.

**** Neste texto descreve-se um pastora cuja formusura é bastante realçada e causa de muitos amores tal como o do sujeito poético que afirma ser-lhe difícil falar dela pois apenas sabe morrer por ela. No entanto, o eu esconde o seu sentimento pela amada e o sofrimento que ele lhe provoca pois vê que ela se ri do sofrimento dos restantes pastores que por ela estão também apaixonados.

De modo a enaltecer a formusura da Dama, o poeta afirma que as flores têm a sorte de serem colhidas por ela e que morrem de inveja devido à superioridade da sua beleza. E acrescenta que mesmo a água corrente para por sentir o reflexo da sua imagem (sugere a limpidez da sua imagem, a pureza).

***** paradoxo; comparação hiperbólica - Não solta os cabelos / Aurora mais bela:; metáforas (2xx); repetição simétrica e antónima (antítese) - não sei / sei.

******  rima: ABBAACC – interpolada, emparelhada.