quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

ANÁLISE DE UM MOVER D'OLHOS BRANDO E PIADOSO, CAMÕES

Influência Renascentista
Um mover d’olhos brando e piadoso,
Sem ver de quê ; um riso brando e honesto,
quási forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;
Um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
ũa pura bondade, manifesto
indício de alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar; ũa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste formosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.
Luís de Camões



Soneto, medida nova, de influência renascentista.
TEMA: retrata-se a mulher amada cuja Beleza é dominada pelos sentimentos, pela caracterização de ordem moral e psicológica. Nesta mesma caracterização sente-se a influência direta de Petrarca no que se refere ao elogio dos aspetos físicos, nomeadamente, olhar, riso, gesto… o sujeito poético faz esta análise em contemplação tal como preconiza Petrarca…
A comprovar estas considerações atente-se nas estrutura das estrofes em que predominam – ou dominam J - as frases nominais, isto é, sem verbos, e em que se fazem referências às qualidades morais da amada, através da utilização de substantivos abstratos ( carácter misterioso da fig. feminina***). Também aqui assistimos à influência do modelo camoniano, Petrarca…
A construção é feita com base em paralelismos, onde o vocabulário se repete quer devido à estrutura das frases em si quer à seleção de sinónimos (a tal repetição mas aqui de significados).
Destas técnicas resulta, diríamos, uma descrição um tanto ou quanto distante dada a enumeração em que a mesma assenta, sem que o sujeito poético dê qualquer informação mais específica ou “personalizada” acerca desta figura feminina. Ele mantém-na rodeada de uma auréola de mistério e calma durante as duas quadras e o primeiro terceto.
Após este momento, dá-se um corte com a passagem para o segundo terceto.
A auréola desfaz-se um pouco com a aproximação sugerida pelo demonstrativo “Esta” e pela expressão “celeste formusura”. O eu reconhece a superioridade daquela mulher relativamente a si próprio, a quem classifica como celeste e formosa, englobando assim dois domínios no que a ela se refere, um espiritual e outro material.
Já no segundo verso, compara-a a Circe, feiticeira, possuidora de mágico veneno [metáfora] que o transformou – e uma vez que a finalidade é mesmo essa, a de transformar o “pensamento” ou seja, o sentimento do eu… em amor, entenda-se. E, assim, o véu do mistério ergue-se um pouco mais quando se define qual a relação daquela mulher com o sujeito poético.
No entanto, acresce dizer, esta dama não é como Circe visto a sua Beleza ser de ordem moral e é nesse sentido que a transformação do eu ocorre.
·         O fim da enumeração coincide com a introdução do pronome demonstrativo “Esta” que é, aliás, o sujeito da primeira e única frase verbal que ocupa todo o terceto e que conclui / explicita o objeto – amada/Circe (realidade mitológica) - do discurso anterior ----------------[1º e 2º momentos, respetivamente].
·         A presença dos indefinidos “Um” e “ua” e a predominância de adjetivos – veja-se a dupla adjetivação a classificar cada um dos nomes - reforçam a ideia de abstração referida anteriormente relativamente aos substantivos.
·         Todos os elementos que se encontram ao longo do texto estão sintetizados e valorizados no 2º terceto ou chave de ouro e que conduzem à transformação daquele que ama.
·         A beleza desta mulher é divina por oposição à da feiticeira Circe, infernal ou diabólica, porque está ligada à sua beleza enquanto que a desta dama está ligada aos aspetos morais. Na verdade, ambas têm o mesmo efeito sobre o poeta uma vez que lhe transformam o pensamento, fazendo-o descer do plano do amor ideal; ela enfeitiça-o, tal como Circe [ver].
·         A figura feminina deste texto corresponde ao retrato clássico de mulher: traços físicos e psicológicos marcados pelo equilíbrio e serenidade de um carácter superior e de beleza celestial.
·         Características petrarquistas mais significativas: - divinização da mulher (carácter superior, beleza celestial); - gosto pelo jogo antitético; - amor espiritual versus amor carnal = CIRCE: celeste formusura, mágico veneno, contemplação e desejo, deusa e mulher.
·         Neste texto, tal como em Endechas a uma bárbora escrava, o sujeito poético evidencia a sua relação com a mulher, com a única diferença de que lá utiliza o presente e aqui, o passado. Esta diferença leva-nos a concluir que o eu já não se encontra com esta mulher, não há presença física = relação platónica.
·         Circe – figura mitológica grega; representa a sedução amorosa, feiticeira que deu a beber aos companheiros de Ulisses a bebida que os transformou em porcos, impedindo Ulisses de partir no desejo de que ele fosse só seu.
·         despejo – compostura natural; quieto e vergonhoso – suave e tímido; um encolhido ousar – timidez;  obediente – submissão, mansidão;


Sem comentários:

Enviar um comentário

COMENTE, SUGIRA, PERGUNTE, OPINE...