Influência
Renascentista
Um mover d’olhos brando e piadoso,
Sem ver de quê ; um riso brando e honesto,
quási forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;
Um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
ũa pura bondade, manifesto
indício de alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar; ũa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento:
Esta foi a celeste formosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.
Luís de Camões
Soneto,
medida nova, de influência renascentista.
TEMA:
retrata-se a mulher amada cuja Beleza é dominada pelos sentimentos, pela
caracterização de ordem moral e psicológica. Nesta mesma caracterização
sente-se a influência direta de Petrarca no que se refere ao elogio dos
aspetos físicos, nomeadamente, olhar, riso, gesto… o sujeito poético faz esta
análise em contemplação tal como preconiza Petrarca…
A
comprovar estas considerações atente-se nas estrutura das estrofes em que
predominam – ou dominam J - as frases nominais, isto é, sem
verbos, e em que se fazem referências às qualidades morais da amada, através da
utilização de substantivos abstratos ( carácter misterioso da fig.
feminina***). Também aqui assistimos à influência do modelo camoniano,
Petrarca…
A
construção é feita com base em paralelismos, onde o vocabulário se repete quer
devido à estrutura das frases em si quer à seleção de sinónimos (a tal repetição mas aqui de significados).
Destas
técnicas resulta, diríamos, uma descrição um tanto ou quanto distante dada a
enumeração em que a mesma assenta, sem que o sujeito poético dê qualquer
informação mais específica ou “personalizada” acerca desta figura feminina. Ele
mantém-na rodeada de uma auréola de mistério e calma durante as duas quadras e
o primeiro terceto.
Após
este momento, dá-se um corte com a passagem para o segundo terceto.
A
auréola desfaz-se um pouco com a aproximação sugerida pelo demonstrativo “Esta”
e pela expressão “celeste formusura”. O eu reconhece a superioridade daquela
mulher relativamente a si próprio, a quem classifica como celeste e formosa,
englobando assim dois domínios no que a ela se refere, um espiritual e outro material.
Já
no segundo verso, compara-a a Circe, feiticeira, possuidora de mágico veneno [metáfora] que o transformou – e uma vez que a finalidade é
mesmo essa, a de transformar o “pensamento” ou seja, o sentimento do eu… em
amor, entenda-se. E, assim, o véu do mistério ergue-se um pouco mais quando se
define qual a relação daquela mulher com o sujeito poético.
No
entanto, acresce dizer, esta dama não é como Circe visto a sua Beleza ser de
ordem moral e é nesse sentido que a transformação do eu ocorre.
·
O fim da enumeração coincide com a
introdução do pronome demonstrativo “Esta” que é, aliás, o sujeito da primeira
e única frase verbal que ocupa todo o terceto e que conclui / explicita o
objeto – amada/Circe (realidade mitológica) - do discurso anterior
----------------[1º e 2º momentos, respetivamente].
·
A presença dos indefinidos “Um” e “ua” e
a predominância de adjetivos – veja-se a dupla adjetivação a classificar cada
um dos nomes - reforçam a ideia de abstração referida anteriormente
relativamente aos substantivos.
·
Todos os elementos que se encontram ao
longo do texto estão sintetizados e valorizados no 2º terceto ou chave de ouro e que conduzem à transformação daquele que
ama.
·
A beleza desta mulher é divina por
oposição à da feiticeira Circe, infernal ou diabólica, porque está ligada à sua
beleza enquanto que a desta dama está ligada aos aspetos morais. Na verdade,
ambas têm o mesmo efeito sobre o poeta uma vez que lhe transformam o
pensamento, fazendo-o descer do plano do amor ideal; ela enfeitiça-o, tal como
Circe [ver].
·
A figura feminina deste texto corresponde
ao retrato clássico de mulher: traços físicos e psicológicos marcados pelo
equilíbrio e serenidade de um carácter superior e de beleza celestial.
·
Características petrarquistas mais
significativas: - divinização da mulher (carácter superior, beleza celestial);
- gosto pelo jogo antitético; - amor espiritual versus amor carnal = CIRCE: celeste formusura, mágico veneno,
contemplação e desejo, deusa e mulher.
·
Neste texto, tal como em Endechas a uma bárbora escrava, o sujeito
poético evidencia a sua relação com a mulher, com a única diferença de que lá
utiliza o presente e aqui, o passado. Esta diferença leva-nos a concluir que o eu já não se encontra com esta mulher,
não há presença física = relação platónica.
·
Circe – figura mitológica
grega; representa a sedução amorosa, feiticeira que deu a beber aos
companheiros de Ulisses a bebida que os transformou em porcos, impedindo
Ulisses de partir no desejo de que ele fosse só seu.
·
despejo
– compostura natural; quieto e vergonhoso
– suave e tímido; um encolhido ousar
– timidez; obediente – submissão, mansidão;
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