segunda-feira, 14 de abril de 2014

"Tabacaria" de Álvaro de Campos - análise do 3º momento / 4 momentos







Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.



Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.




3º momento do poema em que se aborda a temática, de novo, da realidade de tudo, (ver 2ª estrofe).
O eu-poético volta à observação do real - largamente apoiada pela utilização do verbo "ver" que aqui nos surge 6 vezes, todas no presente do indicativo dando-nos a indicação de uma descrição feita no  momento preciso da escrita. Mas o "tudo" que se depara ante os seus olhos é opaco, impenetrável, alheio apesar da sua visão ser nítida ou, talvez, por causa dela.

O "eu" parece ter-se consciencializado que viveu num mundo de aparências - Vivi, estudei, amei e até cri, - o qual o desilude e faz manifestar o desejo de trocar de identidade com outra pessoa - E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

É com o advérbio Talvez que manifesta a sua dúvida de que, afinal, todo o real vivido possa ter sido uma ilusão. A mesma ilusão que é criada pela imagem da cauda do lagarto que, após lhe ter sido cortada, se mexe, como se ainda estivesse viva - como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
. Confessa, por isso, o seu fracasso -

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.

- e a perda de identidade que era, afinal, imaginada, é agora um facto que lhe retira o lugar entre os demais em que o termo máscara já não se aplica à personalidade mas à máscara que se usa enquanto ser fazendo parte de um mundo que é, conclui-se, um grande palco. Ainda assim, este está-lhe vedado pois se ele não faz parte desse mundo e uma vez que se colocou sempre à margem, é lá que deve permanecer: no palco não há lugar para ele. A sua única hipótese será a escrita, podendo provar a si mesmo que é um ser elevado.   (ver...)

A visão da Tabacaria e a consciência da realidade que ela representa irá, no entanto, abalar-lhe a confiança: regressam a apatia, o sentimento de exclusão e a desilusão -

Essência musical dos meus versos inúteis,Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Ao olhar o dono da Tabacaria sente-se desconfortável: ele representa o homem comum e tão inútil como  a Tabacaria, os seus versos ou o mundo ou mesmo o universo -


Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,



... dói-lhe, sobretudo, o facto de ambos, ele e o dono da Tabacaria, terem o mesmo destino, a morte, evidenciando a inutilidade de tudo.


Conclui, reforçando a ideia de que tudo é insignificante e nada e que nem mesmo a escrita dos seus versos lhe trará a salvação. Repare-se na gradação existente nos versos sublinhados...











quarta-feira, 9 de abril de 2014

"Tabacaria" de Álvaro de Campos - análise do 2º Momento / 4 Momentos







(...)


Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?



Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.




(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)




Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.














Tem aqui início o 2º momento (vv. 32- 97).

O "eu" sai da janela e "mergulha" no interior do quarto, isto é, no interior de si próprio -
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?.

A uma deslocação física  para o interior da casa, do quarto, corresponde uma atitude reflexiva, de interiorização por parte deste "eu" que, sabe, não ascenderá a algo superior porque
1 - descrê de si próprio - Não, não creio em mim.
2 - adivinha para si uma sorte idêntica à de outros falhados... - Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
3 - ... que, como ele, viram o seu trabalho esgotado no sonho... - Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
4 - ... seja porque lhe falta a qualidade - Serei sempre o que não nasceu para isso;

O niilismo em Campos representa o aniquilamento, a não-existência, total e absoluto espírito destrutivo em relação ao mundo que o rodeia e ao próprio "eu". A descrença em Campos abrange a ambição humana.
Após mais uma tentativa para tentar perceber qual será o caminho face à antítese sonho/realidade, eis que este "eu" percebe que os sonhos nada valem pois são limitados pelo mundo real e externo. Conclui ainda que tudo aquilo que é feito na imaginação (sonho) não tem valor quando comparado com a realidade.

Segue-se aquele que é um dos momentos mais bonitos do poema, da poesia pessoana.

A pequena que come chocolates representa a autenticidade, a inocência feliz, opondo-se ao ato de pensar. Já Pessoa ortónimo se tinha manifestado relativamente à dor de pensar e ao sofrimento que a mesma lhe causava - vejam-se os poemas "Ela canta" e "Gato". O ato de pensar conduz à perda de autenticidade e ao sofrimento pois a prata revela-se estanho - Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, / Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

O sentimento que o "eu" manifesta em relação à pequena a quem inveja a simplicidade, a liberdade, a inconsciência já nos tinha aparecido nos dois poemas referidos anteriormente -

Na forma de encarar a sua própria vida -
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.


Uma única certeza o "eu" possui na sua vida amarga: a sua poesia - Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Já nada existe que o possa consolar, que possa atenuar o seu sofrimento ou que o possa inspirar porque


(3º momento)



















































domingo, 6 de abril de 2014

"Tabacaria" de Álvaro de Campos - análise da Introdução e do 1º Momento / 4 Momentos















Tabacaria, poema datado de 15/1/1928, pertence, por assim dizer, à fase "intimista", ou terceira fase, da obra poética de Álvaro de Campos, caracterizada por um profundo pessimismo e marcante angústia onde o poeta mergulha, retomando temas como o cansaço e a inquietação quando confrontado com o incompreensível.
Talvez por isso, Tabacaria é o melhor exemplo desta fase de Álvaro de Campos e de várias outras características do conjunto da sua obra.
Igualmente importantes e presentes são o "niilismo, o sentimento de revolta, o inconformismo, a desumanização, um vazio deprimente e a desilusão própria dos tempos do pós-guerra e de um certo desleixo português".


Na abordagem a este poema, há a considerar a existência de uma Introdução e de um Desenvolvimento o qual, por sua vez, é constituído por 4 momentos em que se estabelece a relação do "eu" com os espaços físicos:


DENTRO


- o quarto (cadeira) / fora (janelas)
- deslocação espacial do "eu" poético.

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.




Estes quatro versos constituem a Introdução ao poema.
Nela, o "eu" confessa o seu fracasso, apresenta-se como algo sem solução. Na base desta confissão sugere-se uma outra ideia, a  de que o "eu" pretende ser tudo como possibilidade (v.4).
Será esta a temática ou linha orientadora deste poema,

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a põr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.




Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.  ( este verso conclui sobre as referências anteriores)
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.




1ª momento a considerar (vv. 5-31)


O "eu" reflete sobre o excesso de realidade do mundo exterior -  Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é; cruzada constantemente por gente,
e a irrealidade de tudo - uma rua inacessível ; impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas.  
Neste 1º momento, o "eu" encontra-se à janela do seu quarto, única forma de contactar com o exterior e que se encontra representado no poema pela "rua" e pela "tabacaria".








O Destino surge aqui associado à ideia de Morte (vv.12-13), considerado um tirano que domina tudo e todos - Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Por sua vez, há um claro pessimismo a invadir o "eu", ligado ao desgaste do Tempo e à morte que se tem como certa - Com a morte a põr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, / Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Anáfora. O negativismo do "eu" é assumido nos versos que se seguem à anáfora.

Estamos perante um "eu" contemplativo, invadido por uma oposição; por um lado, o "dentro" representado pelo quarto onde se encontra, subjetivo, campo da sua própria reflexão, e a rua, o "fora", a realidade objetiva.
A reflexão a que o "eu" poético se sujeita, deprime-o, - Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.  assim como a incapacidade de sonhar e a lucidez - Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, 
Afinal, a oposição - o dentro/o fora - que o divide é resultado da sua própria incapacidade para agir mesmo depois de ter pensado, refletido e tirado  conclusões. Regressa, por isso, ao texto, À Tabacaria do outro lado da rua..."


Talvez influenciado pelo seu Mestre Caeiro, recorre à Natureza em busca de um sentido -
Fui até ao campo com grandes propósitos.
visto que esqueceu tudo aquilo que aprendeu e que se revelou inútil - Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. / A aprendizagem que me deram, .

No entanto, esta busca revela-se também ela inútil pois o "eu" é um homem da cidade, lúcido e angustiado - Mas lá encontrei só ervas e árvores, / E quando havia gente era igual à outra.

Deste modo, o "eu" regressa à reflexão como o demonstra o primeiro verso do 2º momento - Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar? - e último da 5ª estrofe.