quarta-feira, 9 de abril de 2014

"Tabacaria" de Álvaro de Campos - análise do 2º Momento / 4 Momentos







(...)


Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?



Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.




(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)




Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.














Tem aqui início o 2º momento (vv. 32- 97).

O "eu" sai da janela e "mergulha" no interior do quarto, isto é, no interior de si próprio -
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?.

A uma deslocação física  para o interior da casa, do quarto, corresponde uma atitude reflexiva, de interiorização por parte deste "eu" que, sabe, não ascenderá a algo superior porque
1 - descrê de si próprio - Não, não creio em mim.
2 - adivinha para si uma sorte idêntica à de outros falhados... - Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
3 - ... que, como ele, viram o seu trabalho esgotado no sonho... - Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
4 - ... seja porque lhe falta a qualidade - Serei sempre o que não nasceu para isso;

O niilismo em Campos representa o aniquilamento, a não-existência, total e absoluto espírito destrutivo em relação ao mundo que o rodeia e ao próprio "eu". A descrença em Campos abrange a ambição humana.
Após mais uma tentativa para tentar perceber qual será o caminho face à antítese sonho/realidade, eis que este "eu" percebe que os sonhos nada valem pois são limitados pelo mundo real e externo. Conclui ainda que tudo aquilo que é feito na imaginação (sonho) não tem valor quando comparado com a realidade.

Segue-se aquele que é um dos momentos mais bonitos do poema, da poesia pessoana.

A pequena que come chocolates representa a autenticidade, a inocência feliz, opondo-se ao ato de pensar. Já Pessoa ortónimo se tinha manifestado relativamente à dor de pensar e ao sofrimento que a mesma lhe causava - vejam-se os poemas "Ela canta" e "Gato". O ato de pensar conduz à perda de autenticidade e ao sofrimento pois a prata revela-se estanho - Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, / Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

O sentimento que o "eu" manifesta em relação à pequena a quem inveja a simplicidade, a liberdade, a inconsciência já nos tinha aparecido nos dois poemas referidos anteriormente -

Na forma de encarar a sua própria vida -
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.


Uma única certeza o "eu" possui na sua vida amarga: a sua poesia - Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Já nada existe que o possa consolar, que possa atenuar o seu sofrimento ou que o possa inspirar porque


(3º momento)



















































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