terça-feira, 31 de outubro de 2017

"LENDAS E NARRATIVAS", ALEXANDRE HERCULANO - "A ABÓBADA" (3)





A Abóbada, conto pertencente ao livro Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, narra a história da construção do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, ou da Batalha, iniciado por D. João I na Quinta do Pinhal, que assim homenageou essa histórica batalha, a Batalha de Aljubarrota.


Em A Abóbada, para além do Mosteiro da Batalha, um "immenso livro de pedra", "a minha Divina Comedia", no dizer de Afonso Domingues, que "escrevera sobre o marmore o hymno dos valentes d' Aljubarrota" (1900, I: 295), essa valorização está presente no carácter de D. João I, "parente do povo por sua mãe" (id.: 283), cuja palavra valia "por ser palavra de cavalleiro português daquelles tempos, em que tão nobres affectos e instinctos havia nos corações de nossos avós que de bom grado lhes devemos perdoar a rudeza."

Alexandre Herculano e a construção da cultura/literatura nacional
Carlos Manuel Ferreira da Cunha (Universidade do Minho)  (excerto)




“As narrativas históricas de Herculano revelam, pois, dupla relação de intertextualidade com as obras medievais: a que se manifesta diretamente entre o texto-fonte e a narrativa em que o escritor o desenvolve, integrando-o sempre num contexto históri­co pormenorizadamente reconstituído; e a que está implícita nos temas e motivos de ficção preferidos por Herculano, assim como na caracterização das personagens, ou dos grupos sociais, que se inserem e participam em acontecimentos históricos, portanto reais, embora as suas reações apenas sejam imaginadas, ou, pelo menos, recriadas, pelo escritor.

Ao elaborar um texto a partir de outro, que lhe servia de matriz, Herculano geralmente desenvolvia certas unidades se­mânticas contidas no primeiro, completando pela imaginação, ou por sugestões devidas a outras relações de intertextualidade, o que, a nível do significado, poderia considerar-se implícito ou possível.

Assim, certas narrativas (A Dama Pé de Cabra, Arras por Foro de Espanha, A Abóbada) evidenciam, pelo próprio tema escolhido, ou através de processos de enriquecimento do texto-fonte, a leitura de duas obras diferentes, mas igualmente reveladas e valorizadas pelo movimento romântico: o Romanceiro e as Crónicas de Fernão Lopes. (…)
N’A Abóbada, Herculano glorifica uma época, reunindo, nesta sua criação original, os heróis de outra gesta – a que Portugal travou contra Castela —, celebrada em pedra por um lídimo representante, como homem de armas de D. Nun'Alvares Pereira, dos combatentes de Aljubarrota: Afonso Domingues, o arquiteto e imaginário, autor do «imenso livro de pedra a que os espíritos vulgares chamam simplesmente o mosteiro da Bata­lha». Colocando frente a frente o «rei dos homens do aceso imaginar» e «o rei dos melhores cavaleiros», identifica-os no mesmo ideal: “só D. João I compreende Afonso Domingues; porque só ele compreende a valia destas duas palavras formosís­simas, palavras de anjos — pátria e glória.”
Utilizando também n'A Abóbada a narração dramatizada, e explorando a teatralidade dos diálogos, Herculano ergue uma grandiosa encenação, que tem por cenário o mosteiro de Santa Maria da Vitória: animada pelo povo que tornou possível o triunfo da nação portuguesa, atuam como personagens as mais representativas e prestigiadas figuras históricas e lendárias — do Dr. João das Regras a Brites de Almeida, a padeira, cuja “tremebunda e patriótica pá do forno [...] hoje é glória e brasão da gótica vila de Aljubarrota”, conforme informação do narrador.
Contudo, no terceiro capítulo (em que ocorre o acontecimen­to fundamental para a progressão da ação — a queda da abóbada), esta técnica narrativa foi substituída pela descrição, completada por outros tipos de enunciado: narração e monólo­go, além das reflexões do narrador. Deste modo são apresenta­dos ao leitor, à maneira de uma encenação dentro de outra, dois espetáculos, cada um deles caracterizado pelo seu ritual — a representação de um mistério, que o povo designa por Auto dos Reis, e a cerimónia do exorcismo. A inclusão de versos contribui para imprimir veracidade à reconstituição do auto, de acordo com o gosto do pitoresco, que caracteriza a estética romântica. Perante o irracionalismo da cena a que o leitor assiste, o narrador assume uma feição pedagógica e crítica, no intuito de defender a mentalidade medieval, identificando as reações de “homens de um século, não só crente, mas também supersti­cioso» às que não poderia deixar de experimentar, apesar de todo o seu racionalismo, “uma grande manada de enciclopedistas”, como observa desdenhosamente.

Na defesa dos valores nacionais e populares, que considera­va sinónimos, Herculano evidencia o contraste entre Afonso Domingues e Mestre David Ouguet, ridicularizando o irlandês, como homem e como arquiteto, por meio de uma caricatura: que poderá considerar-se a expressão da anglofobia do autor, mas serve também de pretexto para criticar com ironia um vício bem português: a preferência, ou o respeito, pelo que é es­trangeiro, mesmo que de inferior qualidade, em comparação com o que o país possui ou poderá produzir.

Pelo contrário, o velho arquiteto parece constituir uma projeção dos íntimos desígnios do jovem romântico (Herculano tinha então vinte e nove anos), e, como tal, anuncia também, com impressionante previsão, o isolamento prematuro a que o escritor se condenará, vencido pela incompreensão do “país sáfaro e inculto”, como diria Mestre Ouguet, e, parafraseando as suas palavras, de “homens brigosos, incapazes dos primores das artes, ou sequer entendê-los”.

E a identificação entre Herculano e Afonso Domingues manifesta-se ainda sob vários aspetos. Como poetas, ambos experimentaram os sentimentos expressos pelo velho arquiteto: “Este mosteiro era a minha Divina Comédia, o cântico da minha alma. Este edifício era meu; porque o gerei; porque o alimentei com a substância da minha alma”. Ambos defendem um conceito de arte nacional (“português sou eu, portuguesa a minha obra”). Como Herculano, também Afonso Domingues foi soldado e companheiro de um rei que lutou pela liberdade (“os vassalos portugueses são livres”). E, à semelhança do “criador da oitava maravilha do mundo”, também Herculano provou com a vida e a obra aspirar apenas a “um nome honrado e glorioso”.

Criando a ficção histórica como obra de arte, mas baseada em prévio trabalho científico, Herculano soube imprimir seriedade às suas obras romanescas, constituindo-as como modelo de todos os que cultivaram este subgénero narrativo.
Maria Ema Tarracha Ferreira

Fevereiro, 1988


"LENDAS E NARRATIVAS", ALEXANDRE HERCULANO - ROMANCE HISTÓRICO E LENDAS E NARRATIVAS (2)



(…) O próprio Herculano, na Advertência da primeira edição de Lendas e Narrativas, diz que o mérito de tais textos e a razão da publicação em volume é, justamente, por se encontrar aí o marco inicial do romance histórico português: Corrigindo-os e publicando-os de novo, para se ajuntarem a composições mais extensas e menos imperfeitas que já viram a luz pública em volumes separados, ele [o próprio Herculano] quis apenas preservar do esquecimento, a que por via de regra são condenados, mais cedo ou mais tarde, os escritos inseridos nas colunas das publicações periódicas, as primeiras tentativas do romance histórico que se fizeram na língua portuguesa. 

(HERCULANO, s.d., p.VI)




            (…) Tendo como principais temas o amor impossível, o nacionalismo, o resgate do passado, o subjetivismo, o egocentrismo, o exagero sentimental ou melodramático, o ufanismo, a solidão, o mistério e a morte, entre outros, os autores românticos representavam a realidade a partir do sonho e da utopia. Adilson Citelli, no estudo sobre o Romantismo, destaca a face revolucionária do pensamento romântico:
A tendência inicial foi saudar e propagandear tais ideias, colocando-se como uma espécie de porta-voz da revolução. O canto de sereia do novo mundo, os novos valores, a possibilidade de concretizar os princípios de justiça social, a perspetiva de criação de uma sociedade mais equânime, sem as discriminações e os entraves do velho modo de produção feudal [...] (Citelli, 1986:19)

Escritor totalmente formado dentro do Romantismo, como apontam António José Saraiva Óscar Lopes, Herculano é o autor português que melhor representa o movimento romântico:

Nado e criado em plena derrocada do velho Portugal, Herculano [...] formou-se inteiramente dentro do Romantismo. É de entre as personalidades do primeiro Romantismo português aquela que, pela formação e pela audiência que alcançou junto do público, representa o movimento romântico de um modo mais completo e persistente. (Saraiva & Lopes, s/d: 763)

Com um projeto que pregava o regresso às raízes nacionais, e com uma obra que abarcava o conjunto da Idade Média portuguesa, Herculano resgata a herança medieval e inicia a novelística portuguesa moderna. A sua literatura de cunho histórico inicia-se com a publicação de Lendas e Narrativas, inaugurando, em Portugal, o género celebrizado pelo inglês Walter Scott (Ibidem: 768-769), precursor das narrativas históricas no Romantismo. Sobre a coletânea de contos de Herculano, Feliciano Ramos comenta:
As Lendas e Narrativas formaram dois volumes que foram publicados em 1851. Acusam já a influência de Fernão Lopes, que Herculano lia e admirava profundamente, se bem que também o contestasse. A coletânea demonstra ainda carinhoso interesse pelas exigências históricas [...].

Além de conterem importantes dados para o estudo da fisionomia da Idade Média, as Lendas e Narrativas representam a tentativa de um género novo, a novela histórica. No prefácio da 1ª edição, Herculano reivindica essa glória, acentuando que as Lendas e Narrativas foram as primeiras tentativas do romance histórico que se fizeram na língua portuguesa.
(Ramos, 1963: 597-598)




"LENDAS E NARRATIVAS", ALEXANDRE HERCULANO - A PROPÓSITO DO ROMANCE HISTÓRICO (1)


Leituras aqui e ali.
Seleção de textos ali e aqui.


(segundo o próprio Herculano)

“O interesse pelo passado, sobretudo nacional, é um dado inquestionável de toda a estética romântica. É do conhecimento geral, que é no início do século XIX que os estudos históricos ganham um relevo diferente do das épocas passadas e que começa a haver uma séria preocupação em estabelecer a cientificidade de uma disciplina que, até então, tinha vivido muito da confusão entre a lenda e a realidade. (...) 

Se, por um lado, o estudo da História apaixonou intelectuais românticos, ao ponto de Herculano, por exemplo, ter percorrido o país à procura de documentos que esclarecessem a vida medieval portuguesa, por outro, não é menos verdade que uma certa efabulação com base histórica, isto é, a criação de universos, simultaneamente fictícios e referenciais, foi também uma constante de um período específico do Romantismo europeu e português. A voga inglesa, francesa ou italiana de reconstituição histórica do passado, na busca de uma identidade nacional que teria ficado abalada com as convulsões sociopolíticas do fim do século XVIII, início do XIX, estende-se também a Portugal.”

(…)


“Deste modo, sendo hoje dificultoso separar, em relação àquelas eras, o histórico do fabuloso, aproveitei de um e de outro o que me pareceu mais apropriado ao meu fim.”

in O Romance Histórico de Alexandre Herculano
Maria de Fátima Marinho



domingo, 29 de outubro de 2017

ALEXANDRE HERCULANO - "A ABÓBADA"



No dia 30 iniciamos o estudo de "A Abóbada" de Alexandre Herculano.

Estejam atentos aos textos que forem sendo colocados por aqui.

Bom trabalho.




sábado, 21 de outubro de 2017

ALGUMAS QUESTÕES A PROPÓSITO DOS POEMAS ESTUDADOS EM AULA



Teste dia 6 de Novembro.

QUESTÕES:



O ANJO CAÍDO
1.     Leia atentamente o poema.
2.     Reconte, de forma literal, a narrativa que está presente no poema O Anjo Caído.
2.1  Reconte a narrativa, mas, desta vez, substituindo os símbolos presentes no poema pelas realidades que eles representam.
2.2  Explique e justifique a intervenção do sujeito poético na salvação(?) do anjo.
2.3  Indique os motivos que levaram à perdição e à morte do sujeito poético.

ESTE INFERNO DE AMAR
1.     Refira as contradições do Amor que estão presentes na 1ªestrofe do poema.
1.1  Justifique o emprego da frase exclamativa “como eu amo!”, no 1º verso, 1ª estrofe.
1.2  Indique as respostas que são dadas pelo sujeito poético, nas 2ª e 3ª estrofes, às interrogações contidas na 1ª estrofe.
2.     Explique o significado da imagem contida na expressão do v. 14 do poema: “dava o Sol tanta luz!”.
3.1 Relacione essa imagem com o papel desempenhado pelos “olhos” na relação Eu/Tu.
3.2 Explique o significado simbólico do adjetivo ”ardentes”, na expressão “olhos ardentes”, v. 16.
       3. Estabeleça uma relação temática entre este poema e o poema “Anjo Caído”.
           3.1 Refira as semelhanças e as diferenças entre os dois poemas, tendo em atenção, principalmente, os versos que rematam os dois textos poéticos.

OS CINCO SENTIDOS
1.     Identifique os sentidos que estão presentes nas cinco primeiras estrofes.
1.1  Explique a razão da ordenação sensorial que se vai construindo ao longo do poema.
1.2  Nesse escalonamento sensorial há uma contínua oposição Céu/Terra.
1.2.1       Justifique essa referência ao elemento Céu, tendo em conta o título do poema e as sucessivas notações sensoriais que nos chamam para o elemento Terra.
2.     Refira a figura de estilo que está presente na 6ª estrofe do poema.
2.1  Explique o significado do recurso a essa figura de estilo, na última estrofe do poema.
3.     Explique em que medida este poema pode ser considerado um poema erótico.

NÃO TE AMO
Comentário
“Em Folhas Caídas, (…) o poeta (…) canta o seu não-amor pela mulher desejada. (…) o poeta dirige-se à Não-Amada para lhe bradar, com fúria incisiva, que não a ama, como é hábito nosso de amar em poesia, com a alma (…), mas a apetece apenas com o deleite fervente dos sentidos (…).”
José Gomes Ferreira,
Introdução a Folhas Caídas de Almeida Garrett.

1.     Neste poema, o sujeito poético procura, através da oposição amar/querer, explicar as contradições e tensões presentes em poemas anteriores.
1.1  Explique de que modo a oposição amar/querer pode explicar e até clarificar todas as tensões e contradições do sujeito poético.
2.     Explique a conotação positiva atribuída a amar e a conotação negativa atribuída a querer.
3.     Que significado pode ter a construção anafórica do poema?

ANJO ÉS
1.     Explique a conceção da Mulher como Anjo e como Demónio que está presente neste poema.
2.     Justifique a transformação das frases afirmativas, da 1ª estrofe, em frases interrogativas, nas 2ª e 3ª estrofes.
3.     Refira as marcas de teatralidade presentes neste poema.



“Amo-te como nunca ninguém amou neste mundo, adoro-te, não sei nem posso ter coração para outra coisa. Tu és o meu primeiro, o meu último amor.” Assim escrevia Garrett à baronesa da Luz, teria ele cinquenta e dois anos e ela trinta e dois. A amante Rosa Montufar Infante, andaluza, célebre pela sua rara beleza, era filha dos marqueses de Silva Alegre e casara em 1837 com um oficial de engenharia (…). A ligação amorosa começou em 1846 e prolongou-se até 53 ou 54, ano da morte de Garrett. O passo acima transcrito pertence a uma carta que, provavelmente, Garrett dirigiu a Rosa em 1851. (…)
Jacinto do Prado Coelho,

Ao Contrário de Penélope



Espera-nos Alexandre Herculano e Lendas e Narrativas - A Abóbada.



"ANJO ÉS" DE ALMEIDA GARRETT





Anjo És
Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
 5 Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
10 Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.
Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua fronte anuviada
15 Não vejo a c'roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
20 Vela os mistérios d'amor.
Teus olhos têm negra a cor,
Cor de noite sem estrela;
A chama é vivaz e é bela,
Mas luz não têm. - Que anjo és tu?
25 Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?
Não respondes - e em teus braços
Com frenéticos abraços
30 Me tens apertado, estreito!...
Isto que me cai no peito
Que foi?... - Lágrima? - Escaldou-me...
Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
35 Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De donde?
Em que mistérios se esconde
40 Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu ou és mulher?


- este poema demonstra bem o papel da mulher na vida do sujeito poético / herói romântico; 
- esta mulher-anjo tem capacidade para dominar e subjugar o eu, sendo a sua força evidenciada pela persistência e determinação do mesmo eu
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
10 Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.

1ª estf. - veja-se como a força que o próprio eu reconhece caracterizá-lo, é utilizado num jogo de contrastes que pretende reforçar a ainda maior força do tu... apesar de o eu ser forte, ainda há quem seja mais forte do que ele...;
2ª estf. - afinal, anjo porquê? por causa das características físicas bem marcadas deste anjo; o tu domina o eu de uma forma como nunca nenhuma mulher o tinha conseguido;
Anjo és. Mas que anjo és tu?


a afirmação inicial do eu não põe em causa se o tu é um anjo mas questiona-se sobre que espécie de anjo será esta mulher; inicia-se um conjunto de hesitações que revelam o espírito inquieto do sujeito poético pois o que ele vê não são as características de um anjo mas outras, físicas,; 
- esta inquietação levam-no a interrogar-se sobre a sua origem deste alguém que não será, certamente, de origem divina; PAZ/GUERRA ou JEOVÁ / BELZEBU, pergunta; de referir o tom teatral neste momento do texto devido à existência de um aparente diálogo;
3ª estf. - um tu que não responde, apenas age, e que conduz o eu ao desespero;
- a partir daqui, o diálogo torna-se mais aberto e dinâmico pois o tu revela-se em atitudes que pouco têm de anjo mas muito mais de mulher e de mulher apaixonada;
                             Escaldou-me...
Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
35 Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,


há um crescendo de intensidade emotiva - gradação - que põe um fim às hesitações do sujeito poético; este toma uma decisão, entrega-se definitivamente embora reconheça que este fogo o arrasta para a perdição, irremediavelmente - fogo de precito [ antecipadamente condenado = Inferno]- mas é desta forma que o tu põe fim às indecisões;
- o sujeito poético demarca-se do discurso anterior; ruptura;
- o anjo maldito a que o eu se entrega é, afinal, meio-anjo / meio-mulher e a cujo poder não se pode fugir; 
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De donde?

é o ardor de um fogo que é o eterno dos condenados e que o tu trouxe de lá = inferno; o sujeito poético questiona-se sobre a proveniência e os mistérios em que ela se esconde, ser fatal e estranho; anjo maldito / demoníaco = mulher fatal;
- no último verso, mulher = demónio?
- anáfora;
- anáfora
- personificação e hipálage
- eufemismo;
- gradação crescente;
- metáfora;
- Romantismo: tom confessional; teatralidade; tema da mulher fatal; os poderes superiores da mulher; referência ao Inferno / Diabo;
- intertextualidade temática: Anjo Caído [o TU (caçador) é vítima do EU tal como em Não te amo, quero-te]; Anjo és [o EU é vítima do Tu tal como em Este Inferno de Amar].






"OS CINCO SENTIDOS" DE ALMEIDA GARRETT




Os Cinco Sentidos
São belas - bem o sei, essas estrelas,
Mil cores - divinais têm essas flores;
Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:
Em toda a natureza
Não vejo outra beleza
Senão a ti - a ti!
Divina - ai! sim, será a voz que afina
Saudosa - na ramagem densa, umbrosa.
será; mas eu do rouxinol que trina
Não oiço a melodia,
Nem sinto outra harmonia
Senão a ti - a ti!
Respira - n'aura que entre as flores gira,
Celeste - incenso de perfume agreste,
Sei... não sinto: minha alma não aspira,
Não percebe, não toma
Senão o doce aroma
Que vem de ti - de ti!
Formosos - são os pomos saborosos,
É um mimo - de néctar o racimo:
E eu tenho fome e sede... sequiosos,
Famintos meus desejos
Estão... mas é de beijos,
É só de ti - de ti!
Macia - deve a relva luzidia
Do leito - ser por certo em que me deito.
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir outras carícias,
Tocar noutras delícias
Senão em ti! - em ti!
A ti! ai, a tios meus sentidos
Todos num confundidos,
Sentem, ouvem, respiram;
Em ti, por ti deliram.
Em ti a minha sorte,
A minha vida em ti;
E quando venha a morte,
Será morrer por ti.

- temática: o amor - intenso, sincero, carnal;
- o sujeito poético aborda a problemática de cada sentido e a relação destes com a mulher;
- constituído por 6 estrofes, correspondem as 5 primeiras à caracterização superlativada dos cinco sentidos do tu, sendo a última estrofe uma confirmação da planificação do poema, em que todos os sentidos se confundem num só, com um desfecho no êxtase, num "delírio" total;

## vejamos então as quatro primeiras estrofes...

- a abordagem dos 5 sentidos é feita progressivamente, do mais abstrato para o mais físico; 
- na primeira estrofe, o olhar: sentido sensual que pode ser usado à distância;
- o sujeito poético estabelece uma relação entre a Natureza e a mulher, referindo qual a sua relação com ela;
- a sobrevalorização da mulher pode ser verificada na utilização da adversativa mas; do advérbio de exclusão Senão; na repetição a ti e na exclamação final Senão a ti - a ti!;
- na segunda estrofe, na relação que estabelece entre a mulher e a Natureza, a figura feminina é considerada superior quando comparada aos elementos da segunda; por exemplo, o rouxinol é considerado o exemplo máximo do canto harmonioso que, neste texto, é secundário para o sujeito poético que apenas tem ouvidos para a amada;
- o sentido privilegiado é a audição; ouvir, embora se perceba à distância, pressupõe a existência de uma maior proximidade;
- na terceira estrofe, a mulher é, de novo, caracterizada como superior à Natureza, sendo reforçada esta ideia de exclusividade da perfeição da amada pelas expressões...; esta é a mulher-anjo da estética romântica, possuidora das características da Natureza, é-lhe, no entanto, superior;
- o sentido implícito é o olfato que quase exige o contacto físico;
- na quarta estrofe, É a mulher mais próxima e sensual;
- o sentido aqui abordado, o paladar,  apenas pode ser concretizado, digamos, através do contacto físico;
- o carácter erótico do amor que se vinha notando desde o início é aqui reforçado pela quase apropriação física da mulher;
- Vv. 3-6 - hipérbato e reticências reveladores da perturbação emocional do eu;
- leia-se: formosos - tentadores; pomos - maçãs; indiciam a fome e evocam o pecado original; racimo - termo da botânica que designa o tipo de uma flor que nasce nas plantas ou frutas que se desenvolvem em cachos, como a uva; pode ser sinónimo de néctar; fome e sede - saciedade; remetem para o plano físico, da sensualidade;
- na quinta estrofe, o sentido é o tato, sendo que a relva é uma metáfora do corpo humano;
- [para]teatralidade = [para] = junto de; aproximado; 
- todo o discurso do eu se destina à mulher; estão presentes e a 2ª pessoa, tu e ti; estes dois aspetos conferem ao poema o seu caráter parateatral;
a
- em cada uma das estrofes, o sujeito poético enquadra o tu no meio de elementos da Natureza, em que é clara a existência de uma comparação. No entanto, o tu sai dela sublimado: na 1ª est. é comparado a flores, estrelas; na 2ª, ao rouxinol; na 3ª, ao incenso de perfume agreste; na 4ª, aos pomos saborosos e ao racimo de néctar e na 5ª est., à relva luzidia.
- "resumo"... na 1ª est. veem-se as estrelas e as flores (céu e terra) passando pela audição do rouxinol na 2ª est., o sentir da brisa na 3ª, o gosto dos dos frutos na 4ª est. ou a macieza da relva na 5ª est.. A caracterização faz-se do mais distante para o mais íntimo;
- na 6ª estrofe e como já referido no início desta análise, assistimos à planificação do poema em que todos os sentidos se confundem = delírio dos sentidos = desordem essa já evidenciada na acumulação de formas verbais do verso Sentem, ouvem, respiram, reveladoras da agitação interior do eu;
- de salientar a presença de duas realidades absolutas, Amor e Morte, cuja associação é já conhecida na poesia romântica;
- Anáfora;
- é possível estabelecer um paralelo entre este poema e a lírica trovadoresca = ideia da Morte de Amor por... das cantigas de Amor = impossibilidade de comunicação que conduz à morte poética ou fingimento poético; em Garrett, assistimos ao excesso de felicidade e de prazer que conduz à morte psicológica;
- aspetos temáticos que evidenciam a presença do Romantismo: ligação Amor/Morte; ligação Amor/Natureza; valorização da sensualidade e sobrevalorização da Mulher;
- clima erótico entre EU/TU é realçado pela variação do refrão e pelo valor das preposições que nele alternam:



a ti - preposição que remete para um contacto exterior ao tu;

de ti - preposição apontando para o contacto físico;

em ti - denota uma aproximação que pressupõe a partilha de sensações.

- o pronome Ti revela uma forma direta e íntima de relação; o eu refere-se, dirige-se a uma pessoa que supera o mundo em todas as suas vertentes sensíveis, é maior e melhor que todas as outras e do que aquilo que o rodeia;
- este é também um poema de frustração: se a ordem por que aparecem os sentidos é ascendente, do mais distante para o mais próximo, ela é também descendente [do céu para a terra >há uma aproximação;
- destrói-se no eu a sua aspiração à Mulher-Anjo, ao Ideal e à Beleza Pura que se anuncia em Ignoto Deo; o poeta sabe-o bem mas, para a sua frustração, prefere o Sentir ao Saber;

*** a ti - visão;

                                  >     contemplação
       a ti - audição 


*** de ti - olfato

                                 >      proximidade
       de ti - gosto 

*** em ti - tato       >       intimidade