domingo, 1 de outubro de 2017

"IGNOTO DEO" DE ALMEIDA GARRETT



Ignoto Deo
(D. D. D.)
Creio em ti, Deus; a fé viva
De minha alma a ti se eleva.
És: - o que és não sei. Deriva
Meu ser do teu: luz... e treva,
 5 Em que - indistintas! - se envolve
Este espírito agitado,
De ti vêm, a ti devolve.
O Nada, a que foi roubado
Pelo sopro criador
10 Tudo o mais, o há-de tragar.
Só vive do eterno ardor
O que está sempre a aspirar
Ao infinito donde veio.
Beleza és tu, luz és tu,
15 Verdade és tu só. Não creio
Senão em ti; o olho nu
Do homem não vê na terra
Mais que a dúvida, a incerteza,
A forma que engana e erra.
20 Essência! a real beleza,
O puro amor - o prazer
Que não fatiga e não gasta...
Só por ti os pode ver
O que, inspirado, se afasta,
25 Ignoto Deo, das ronceiras,
Vulgares turbas: despidos
Das coisas vãs e grosseiras
Sua alma, razão, sentidos,
A ti se dão, em ti vida,
30 E por ti vida têm. Eu, consagrado
A teu altar, me prostro e a combatida
Existência aqui ponho, aqui votado
Fica este livro - confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só spera.



- poema que introduz a coletânea Folhas Caídas e que serve de dedicatória "a um deus desconhecido";
- funciona como uma abertura à leitura da obra;
- o título remete para o classicismo: termos em latim, referência a um Deus em que o poeta acredita e apesar de desconhecido;
- Ignoto Deo já tinha sido anunciado na Advertência;
- poema que é uma confissão sincera de um Eu perante a divindade, confissão de uma fé cega que se entrega a uma esperança incontida mas confusa pois não consegue definir este deus;
- D.D.D. - dat, donat, dedicat: isto é, dá, oferece, dedica;
- percebemos que se trata de um ser divino - A teu altar, v.31;
- existem duas entidades: o sujeito (eu) Creio, em ti, Deus; (objeto) sendo este último identificado com o Céu e o primeiro com a Terra - me prostro (ser humano);
- vocábulos que caracterizam este deus: Beleza, luz, Verdade, Essência!, O puro amor, Ignoto Deo;
- O Eu e o Tu encontram-se presos, interligados, sendo que o primeiro encontra no Tu o prazer /que não fatiga e não gasta... , entregando-lhe a sua alma;  
- uma leitura possível: estamos perante um poeta inquieto, ansioso e dependente face a uma entidade que o ultrapassa, para a qual vive [tendo em conta o contexto da obra, o amor a que o poeta se entrega é mais humano que divino uma vez que se refere a uma entidade feminina a que o Eu se dedica por inteiro];
- escreve Garrett na apresentação de Folhas Caídas, "O meu deus desconhecido é realmente aquele misterioso, oculto e não definido sentimento de alma que a leva às aspirações de uma felicidade de ideal, o sonho de oiro do poeta.";
- este texto é ponto de partida para a leitura dos que se seguem. Uma vez apresentado, percebemos que este deus é onde ele encontra a serenidade e a verdade.



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