sábado, 21 de outubro de 2017

"ADEUS" DE ALMEIDA GARRETT




Adeus! para sempre adeus!
Vai-te, oh! vai-te, que nesta hora
Sinto a justiça dos céus
Esmagar-me a alma que chora.
  5 Choro porque não te amei,
Choro o amor que me tiveste;
O que eu perco, bem no sei,
Mas tu... tu nada perdeste;
Que este mau coração meu
 10 Nos secretos escaninhos
Tem venenos tão daninhos
Que o seu poder só sei eu.
Oh! vai... para sempre adeus!
Vai, que há justiça nos céus.
 15 Sinto gerar na peçonha
Do ulcerado coração
Essa víbora medonha
Que por seu fatal condão
Há-de rasgá-lo ao nascer:
 20 Há-de sim, serás vingada,
E o meu castigo há-de ser
Ciúme de ver-te amada,
Remorso de te perder.
Vai-te, oh! vai-te, longe, embora,
 25 Que sou eu capaz agora
De te amar - Ai! se eu te amasse!
Vê se no árido pragal
Deste peito se ateasse
De amor o incêndio fatal!
 30 Mais negro e feio no inferno
Não chameia o fogo eterno.
Que sim? Que antes isso? - Ai, triste! -
Não sabes o que pediste.
Não te bastou suportar
 35 O cepo-rei; impaciente
Tu ousas a deus tentar
Pedindo-lhe o rei-serpente!
E cuidas amar-me ainda?
Enganas-te: é morta, é finda,
 40 Dissipada é a ilusão.
Do meigo azul de teus olhos
Tanta lágrima verteste,
Tanto esse orvalho celeste
Derramado o viste em vão
 45 Nesta seara de abrolhos,
Que a fonte secou. Agora
Amarás... sim, hás-de amar,
Amar deves... Muito embora...
Oh! mas noutro hás-de sonhar
 50 Os sonhos de oiro encantados
Que o mundo chamou amores.
E eu réprobo... eu se o verei?
Se em meus olhos encovados
Der a luz de teus ardores...
 55 Se com ela cegarei?
Se o nada dessas mentiras
Me entrar pelo vão da vida...
Se, ao ver que feliz deliras,
Também eu sonhar... Perdida,
 60 Perdida serás - perdida.
Oh! vai-te, vai, longe embora!
Que te lembre sempre e agora
Que não te amei nunca... ai! não;
E que pude a sangue-frio,
 65 Covarde, infame, vilão,
Gozar-te - mentir sem brio,
Sem alma, sem dó, sem pejo,
Cometendo em cada beijo
Um crime... Ai! triste, não chores,
 70 Não chores, anjo do céu,
Que o desonrado sou eu.
Perdoar-me tu?... Não mereço.
A imundo cerdo voraz
Essas pérolas de preço
 75 Não as deites: é capaz
De as desprezar na torpeza
De sua bruta natureza.
Irada, te há-de admirar,
Despeitosa, respeitar,
 80 Mas indulgente... Oh! o perdão
É perdido no vilão,
Que de ti há-de zombar.
Vai, vai... para sempre adeus!
Para sempre aos olhos meus
 85 Sumido seja o clarão
De tua divina estrela.
Faltam-me olhos e razão
Para a ver, para entendê-la:
Alta está no firmamento
 90 Demais, e demais é bela
Para o baixo pensamento
Com que em má hora a fitei;
Falso e vil o encantamento
Com que a luz lhe fascinei.
 95 Que volte a sua beleza
Do azul do céu à pureza,
E que a mim me deixe aqui
Nas trevas em que nasci,
Trevas negras, densas, feias,
100 Como é negro este aleijão
Donde me vem sangrar às veias,
Este que foi coração,
Este que amar-te não sabe
Porque é só terra - e não cabe
105 Nele uma ideia dos céus...
Oh! vai, vai; deixa-me, adeus!




- depois da dedicatória com Ignoto Deo, temos a despedida com Adeus!. Segue-se Folhas Caídas, o resto, onde, numa analepse narrativa, se descreve o caminho percorrido pelas duas personagens, eu e tu, e que as conduziu ao momento do Adeus!;
- o relato é feito no presente, evocando o passado, embora com perspetivas futuras que não implicarão o sujeito poético;
- o sujeito poético lamenta não ter amado o tu como ele o amou;
- e o Amor será o seu destino, será amá-la quando ela tiver outro Amor e essa será a vingança deste tu uma vez que o eu sentirá ciúme e remorso: 
- contradição1: porque será ele castigado se já tinha confessado não amar o tu?
- contradição2: como se pode sentir ciúme por alguém que já não se ama? ou o que sente é apenas frustração pelo vazio de não se poder ter o objeto de prazer? (futuro)
- as perguntas de retórica apontam para a existência de teatralidade pois "questionam"  o tu sobre o que ela lhe teria dito num possível diálogo entre os dois;
- auto-critica-se mas não é vingança;
- ela terá dito que o perdoava mas ele afirma que isso seria atirar pérolas a porcos uma vez que ele não merece o seu perdão; 
- o desafio (hybris) existiu quando esta estrela desceu do céu e ele ousou fitá-la;
- marcas de Romantismo: tom confessional; teatralidade; introduz o tema ciúme; alude/refere-se ao amor sensual; mulher-anjo; referência ao Inferno;
- é o eu que pede ao tu para o deixar, não é ele quem toma a iniciativa; 
- à semelhança da tragédia, assistimos a um conflito que conduz à catástrofe que consiste na dificuldade ou quase impossibilidade de sair da vida do eu que assim não tem paz.



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