terça-feira, 31 de outubro de 2017

"LENDAS E NARRATIVAS", ALEXANDRE HERCULANO - "A ABÓBADA" (3)





A Abóbada, conto pertencente ao livro Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, narra a história da construção do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, ou da Batalha, iniciado por D. João I na Quinta do Pinhal, que assim homenageou essa histórica batalha, a Batalha de Aljubarrota.


Em A Abóbada, para além do Mosteiro da Batalha, um "immenso livro de pedra", "a minha Divina Comedia", no dizer de Afonso Domingues, que "escrevera sobre o marmore o hymno dos valentes d' Aljubarrota" (1900, I: 295), essa valorização está presente no carácter de D. João I, "parente do povo por sua mãe" (id.: 283), cuja palavra valia "por ser palavra de cavalleiro português daquelles tempos, em que tão nobres affectos e instinctos havia nos corações de nossos avós que de bom grado lhes devemos perdoar a rudeza."

Alexandre Herculano e a construção da cultura/literatura nacional
Carlos Manuel Ferreira da Cunha (Universidade do Minho)  (excerto)




“As narrativas históricas de Herculano revelam, pois, dupla relação de intertextualidade com as obras medievais: a que se manifesta diretamente entre o texto-fonte e a narrativa em que o escritor o desenvolve, integrando-o sempre num contexto históri­co pormenorizadamente reconstituído; e a que está implícita nos temas e motivos de ficção preferidos por Herculano, assim como na caracterização das personagens, ou dos grupos sociais, que se inserem e participam em acontecimentos históricos, portanto reais, embora as suas reações apenas sejam imaginadas, ou, pelo menos, recriadas, pelo escritor.

Ao elaborar um texto a partir de outro, que lhe servia de matriz, Herculano geralmente desenvolvia certas unidades se­mânticas contidas no primeiro, completando pela imaginação, ou por sugestões devidas a outras relações de intertextualidade, o que, a nível do significado, poderia considerar-se implícito ou possível.

Assim, certas narrativas (A Dama Pé de Cabra, Arras por Foro de Espanha, A Abóbada) evidenciam, pelo próprio tema escolhido, ou através de processos de enriquecimento do texto-fonte, a leitura de duas obras diferentes, mas igualmente reveladas e valorizadas pelo movimento romântico: o Romanceiro e as Crónicas de Fernão Lopes. (…)
N’A Abóbada, Herculano glorifica uma época, reunindo, nesta sua criação original, os heróis de outra gesta – a que Portugal travou contra Castela —, celebrada em pedra por um lídimo representante, como homem de armas de D. Nun'Alvares Pereira, dos combatentes de Aljubarrota: Afonso Domingues, o arquiteto e imaginário, autor do «imenso livro de pedra a que os espíritos vulgares chamam simplesmente o mosteiro da Bata­lha». Colocando frente a frente o «rei dos homens do aceso imaginar» e «o rei dos melhores cavaleiros», identifica-os no mesmo ideal: “só D. João I compreende Afonso Domingues; porque só ele compreende a valia destas duas palavras formosís­simas, palavras de anjos — pátria e glória.”
Utilizando também n'A Abóbada a narração dramatizada, e explorando a teatralidade dos diálogos, Herculano ergue uma grandiosa encenação, que tem por cenário o mosteiro de Santa Maria da Vitória: animada pelo povo que tornou possível o triunfo da nação portuguesa, atuam como personagens as mais representativas e prestigiadas figuras históricas e lendárias — do Dr. João das Regras a Brites de Almeida, a padeira, cuja “tremebunda e patriótica pá do forno [...] hoje é glória e brasão da gótica vila de Aljubarrota”, conforme informação do narrador.
Contudo, no terceiro capítulo (em que ocorre o acontecimen­to fundamental para a progressão da ação — a queda da abóbada), esta técnica narrativa foi substituída pela descrição, completada por outros tipos de enunciado: narração e monólo­go, além das reflexões do narrador. Deste modo são apresenta­dos ao leitor, à maneira de uma encenação dentro de outra, dois espetáculos, cada um deles caracterizado pelo seu ritual — a representação de um mistério, que o povo designa por Auto dos Reis, e a cerimónia do exorcismo. A inclusão de versos contribui para imprimir veracidade à reconstituição do auto, de acordo com o gosto do pitoresco, que caracteriza a estética romântica. Perante o irracionalismo da cena a que o leitor assiste, o narrador assume uma feição pedagógica e crítica, no intuito de defender a mentalidade medieval, identificando as reações de “homens de um século, não só crente, mas também supersti­cioso» às que não poderia deixar de experimentar, apesar de todo o seu racionalismo, “uma grande manada de enciclopedistas”, como observa desdenhosamente.

Na defesa dos valores nacionais e populares, que considera­va sinónimos, Herculano evidencia o contraste entre Afonso Domingues e Mestre David Ouguet, ridicularizando o irlandês, como homem e como arquiteto, por meio de uma caricatura: que poderá considerar-se a expressão da anglofobia do autor, mas serve também de pretexto para criticar com ironia um vício bem português: a preferência, ou o respeito, pelo que é es­trangeiro, mesmo que de inferior qualidade, em comparação com o que o país possui ou poderá produzir.

Pelo contrário, o velho arquiteto parece constituir uma projeção dos íntimos desígnios do jovem romântico (Herculano tinha então vinte e nove anos), e, como tal, anuncia também, com impressionante previsão, o isolamento prematuro a que o escritor se condenará, vencido pela incompreensão do “país sáfaro e inculto”, como diria Mestre Ouguet, e, parafraseando as suas palavras, de “homens brigosos, incapazes dos primores das artes, ou sequer entendê-los”.

E a identificação entre Herculano e Afonso Domingues manifesta-se ainda sob vários aspetos. Como poetas, ambos experimentaram os sentimentos expressos pelo velho arquiteto: “Este mosteiro era a minha Divina Comédia, o cântico da minha alma. Este edifício era meu; porque o gerei; porque o alimentei com a substância da minha alma”. Ambos defendem um conceito de arte nacional (“português sou eu, portuguesa a minha obra”). Como Herculano, também Afonso Domingues foi soldado e companheiro de um rei que lutou pela liberdade (“os vassalos portugueses são livres”). E, à semelhança do “criador da oitava maravilha do mundo”, também Herculano provou com a vida e a obra aspirar apenas a “um nome honrado e glorioso”.

Criando a ficção histórica como obra de arte, mas baseada em prévio trabalho científico, Herculano soube imprimir seriedade às suas obras romanescas, constituindo-as como modelo de todos os que cultivaram este subgénero narrativo.
Maria Ema Tarracha Ferreira

Fevereiro, 1988


Sem comentários:

Enviar um comentário

COMENTE, SUGIRA, PERGUNTE, OPINE...