sábado, 21 de outubro de 2017

"O ANJO CAÍDO" DE ALMEIDA GARRETT



O Anjo Caído
Era um anjo de Deus
Que se perdera dos céus
E terra a terra voava.
A seta que lhe acertava
 5 Partira de arco traidor,
Porque as penas que levava
Não eram penas de amor.
O anjo caiu ferido,
E se viu aos pés rendido
10 Do tirano caçador.
De asa morta e sem splendor
O triste, peregrinando
Por estes vales de dor,
Andou gemendo e chorando.
15 Vi-o eu, o anjo dos céus,
O abandonado de Deus,
Vi-o, nessa tropelia
Que o mundo chama alegria,
Vi-o a taça do prazer
20 Pôr ao lábio que tremia...
E só lágrimas beber.
Ninguém mais na terra o via,
Era eu só que o conhecia...
Eu que já não posso amar!
25 Quem no havia de salvar?
Eu, que numa sepultura
Me fora vivo enterrar?
Loucura! ai, cega loucura!
Mas entre os anjos dos céus
30 Faltava um anjo ao seu Deus;
E remi-lo e resgatá-lo,
Daquela infâmia salvá-lo
Só força de amor podia.
Quem desse amor há-de amá-lo,
35 Se ninguém o conhecia?
Eu só, - e eu morto, eu descrido,
Eu tive o arrojo atrevido
De amar um anjo sem luz.
Cravei-a eu nessa cruz
40 Minha alma que renascia,
Que toda em sua alma pus,
E o meu ser se dividia,
Porque ela outra alma não tinha,
Outra alma senão a minha...
45 Tarde, ai! tarde o conheci,
Porque eu o meu ser perdi,
E ele à vida não volveu...
Mas da morte que eu morri
Também o infeliz morreu.

- estamos perante um texto narrativo  [presença de duas personagens, o anjo caído e o tirano caçador que se identifica com o narrador];
- o início do texto poderia ser Era uma vez um anjo de Deus;
- o título antecipa o desfecho da ação;
- o narrador é quem narra a história e é simultaneamente homodiegético e omnisciente; 
- a presença destes dois tipos de narrador faz com que o modo de narrar varie: no primeiro, o narrador distancia-se; no segundo, mostra-se emotivo sobretudo quando se assume como personagem;
- a história reporta-se a um passado indeterminado - tempos verbais no Pretérito Imperfeito e no Pretérito Perfeito - narrado num tempo presente;
- marcas do Romantismo: mito do Paraíso perdido, mito da mulher-anjo (vítima do tirano caçador); transgressão às regras dos modos literários (hibridismo que resulta de características líricas e narrativas).



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