quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

FARSA DE INÊS PEREIRA, GIL VICENTE - CONTEXTUALIZAÇÃO II






Humanismo

Embora se trate de um termo polissémico, ele interessa-nos apenas no seu sentido mais restrito ou histórico, entendido enquanto o movimento literário e cultural de uma época marcada por profundas transformações na sociedade europeia.

O Humanismo corresponde ao período de transição da Idade Média para a Idade Clássica. Tem como marcos iniciais as nomeações de Fernão Lopes como Guarda-Mor da Torre do Tombo (local onde se guardavam os documentos oficiais), em 1418 e, como Cronista-Mor do Reino, em 1434, quando recebeu de D. Duarte, rei de Portugal, a incumbência de escrever a história dos reis que o precederam.

Historicamente, o Humanismo foi um movimento intelectual italiano do final do século XIII que se difundiu por quase toda a Europa, isto porque, após a queda de Constantinopla em 1453, muitos intelectuais gregos (professores, religiosos e artistas) refugiaram-se na Itália e começaram a propagar uma nova visão de mundo, mais antropocêntrica, indo de encontro à visão teocêntrica medieval. Entre as principais ideias humanistas estavam:

• recuperação da cultura antiga, através do estudo e imitação dos poetas e filósofos greco-latinos;

• revalorização da filosofia de Platão, especialmente no que diz respeito à distinção entre o amor espiritual e o carnal - neoplatonismo;

• crítica à hierarquia medieval, o homem reivindicando para si uma posição de destaque no Universo - não aceitação passiva das imposições místicas difundidas na ideia de destino;

• bifrontismo, coexistência de características medievais (feudalismo, teocentrismo) e renascentistas (mercantilismo, antropocentrismo, pragmatismo burguês).

No final da Idade Média, Portugal passava por profundas transformações. O desenvolvimento de outras atividades económicas estimulou a crise do sistema feudal e deu início ao chamado mercantilismo – a economia de subsistência é substituída gradativamente por atividades comerciais. Surgem as pequenas cidades, chamadas burgos, e com elas uma nova classe social, a burguesia. Muitas descobertas são feitas, entre elas a invenção da imprensa (em 1448, por Gutenberg) e de instrumentos relacionados com a expansão ultramarina. Mas é, sem dúvida, a Revolução de Avis (1383-1385) o marco cronológico da consolidação do Estado Nacional Português. Através dela estabelece-se a política centralizadora do poder nas mãos do rei,  pela burguesia mercantilista. A partir da primeira conquista ultramarina portuguesa, a Tomada de Ceuta, em 1415, inicia-se o período das Grandes Navegações, que consolidam o nacionalismo português.

 
A produção literária desse período subdivide-se em:

·         Poesia Palaciana

crónicas de Fernão Lopes
• Prosa
prosa doutrinária
novelas de cavalaria

 

A Poesia Palaciana, como o próprio nome indica, era poesia produzida no ambiente dos palácios, feita por nobres e destinada à corte. Ao contrário dos códices (manuscritos) trovadorescos, grande parte da produção poética desse período foi recolhida por Garcia Resende, no Cancioneiro Geral, formado por 880 composições, impresso em 1516. Entre suas principais características estão:

- separação entre música e texto – a poesia destina-se à leitura. Assim, a própria linguagem é responsável pelo ritmo e expressividade. O termo trovador aos poucos assume um caráter pejorativo e começa a surgir a figura do poeta;

- utilização das redondilhas – versos compostos por cinco (redondilhas menores) ou sete sílabas poéticas (redondilhas maiores);

- temática variada – com composições religiosas, satíricas, didáticas, heroicas e líricas. O lirismo amoroso trovadoresco, a partir da influência de Petrarca (um dos precursores do Humanismo italiano), assume uma nova conotação, a mulher idealizada, inatingível, carnaliza-se e a sensualidade, reprimida nas cantigas de amor, passa a ser frequente.

Fernão Lopes é a principal figura da prosa humanista, considerado o fundador da historiografia portuguesa. Sua importância deve-se não só ao aspeto histórico da sua produção, mas também ao aspeto artístico das suas crónicas. Nas suas crónicas, apesar de regiocêntricas, o povo aparece pela primeira vez com coautor das mudanças históricas portuguesas. Entre as suas características, destacam-se: a imparcialidade, o registo documental, a criticidade e o nacionalismo. São da autoria de Fernão Lopes:

- A prosa doutrinária, também chamada de ensinanças, corresponde a textos de caráter didático, destinados à nobreza. São obras para o aprendizado de certas artes da época, como a montaria.

- As novelas de cavalaria conservam basicamente as mesmas características do Trovadorismo.

·         O Teatro de Gil Vicente

Antes da produção vicentina é praticamente impossível falar-se em teatro. A manifestação teatral da Idade Média limitava-se às encenações de caráter litúrgico, presas aos rituais da religião católica. As encenações religiosas apresentadas no interior das igrejas dividiam-se em:

- mistério – representação da vida de Jesus Cristo;

- milagre – representação da vida de santos;

- moralidade – representações curtas com finalidade didática ou moralizante.

As encenações que ocorriam fora dos templos religiosos recebiam o nome de profanas e apresentavam um caráter mais popular e não estavam relacionadas com os cultos católicos.

Pouco se sabe sobre os dados biográficos de Gil Vicente. Acredita-se que tenha tido muito prestígio na corte portuguesa, desempenhando a função de organizador das grandes festas palacianas. Para outros, entretanto, desempenhava a função de ourives, atraindo a atenção da rainha Leonor. Mas é unanime o seu reconhecimento como o fundador do teatro português e o maior representante do Humanismo.

Assim como o período em que se vivia, as suas peças apresentavam o bifrontismo como característica central. Ora com fortes marcas medievais, ora com antecipações renascentistas.

Gil Vicente criticou toda a sociedade da sua época, as suas peças apresentam indivíduos de todos os segmentos sociais. Só não criticou mordazmente a Família Real, da qual dependia. É importante destacar que todo o moralismo vicentino não é contra as instituições mas contra os indivíduos que as corrompiam. Tanto que em nenhum de seus trabalhos questionou qualquer verdade cristã, apresentando uma visão teocêntrica e conservadora da sociedade. Na realidade, era contra as novidades trazidas pelas mudanças do período que punham em risco a integridade do povo português. Os seus autos representam uma tentativa de resgate dessa integridade que se perdia através da corrupção, do adultério e da ambição.

Por outro lado, Gil Vicente inovou, mesmo escrevendo em redondilhas, não seguiu a rigidez do teatro clássico vigente até então que contemplava a unidade de ação, de tempo e de espaço. As suas representações apresentavam uma grande variedade temática, povoadas por inúmeros personagens, amplitude temporal e justaposição de lugares. A alegoria, as personagens-tipo e a variedade linguística também o distinguem do seu tempo. As suas personagens não apresentam características particularizadas, pelo contrário, são generalizações, estereótipos, que representam uma categoria profissional ou uma classe social (povoam as suas peças as alcoviteiras, os fidalgos, os frades, os judeus). Outras vezes, através da abstração, as personagens representam ideias ou instituições (a Fama, a Igreja, a Lusitânia, Todo-o-Mundo e Ninguém). As personagens vicentinas expressavam-se através de diversos registos linguísticos: arcaísmos, castelhano, latim, português chulo, coloquial, popular, culto e erudito.

A produção teatral de Gil Vicente divide-se em três fases:

- Primeira Fase – marcada pelos traços medievais e pela influência espanhola de Juan del Encina. São desta fase: O Monólogo do Vaqueiro, o Auto Pastoril Castelhano, o Auto dos Reis Magos, entre outros.

- Segunda Fase – aparecem a sátira dos costumes e a forte crítica social. São desta fase: Quem tem farelos?, O Velho da Horta, o Auto da Índia e a Exortação da Guerra.

- Terceira Fase – aprofundamento da crítica social através da tragicomédia alegórica, da variedade temática e linguística, é o período da maturidade expressiva. São desta fase: A Trilogia das Barcas, a Farsa de Inês Pereira, o Auto da Lusitânia.

·         A Farsa de Inês Pereira

Conta a história que a Farsa de Inês Pereira surgiu por volta de 1523, quando a autoria dos textos de Gil Vicente foi questionada. Ele, a fim de provar a sua inocência, pediu que lhe dessem um tema qualquer para que produzisse uma peça. O tema dado foi um dito popular: “mais quero um asno que me leve que cavalo que me derrube”, expressão conhecidíssima da célebre farsa.

Inês Pereira, jovem ambiciosa e namoradeira, cansada dos afazeres domésticos decide se casar, mas não com qualquer rapaz de sua classe social, deseja um casamento nobre, com um homem que seja galante, discreto e que saiba cantar. Recusa o casamento com Pêro Marques, que mesmo rico era camponês e casa-se com Brás da Mata, falso escudeiro que a maltrata após o casamento.

Com a morte do marido, a jovem casa-se novamente com o primeiro pretendente, mesmo sem amá-lo. Ingénuo e devotado, Pêro Marques não percebe a traição da mulher com um falso religioso e, na cena final da farsa, leva a própria esposa para os braços do amante, daí a frase: “mais quero um asno que me leve que cavalo que me derrube”.

 

 

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