quinta-feira, 16 de novembro de 2017

ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA - Análise do texto








A sinceridade e o fingimento
Pessoa trouxe à poesia portuguesa a dialética, como movimento pela unidade dos opostos, da sinceridade-fingimento, ligando-a estreitamente aliás à da consciência-inconsciência e à do sentir-pensar. (…) Regressando ao caminho que leva à teoria do fingimento, parece-nos dever-se distinguir entre os traços precursores apontados, a autoexplicação “patológica” do fenómeno da heteronímia, por um lado, e o modo como ele efetivamente se processa em Pessoa. (…) Sim, Pessoa ganhou consciência de que “o poeta é fingidor”; a própria aptidão de exprimir “a dor que deveras sente” só se torna possível graças a uma esmerada arte de fingimento, conforme assevera a quadra inicial da “Autopsicografia”. (…)
Óscar Lopes, Lit. Port.- III – Época Contemporânea,
História Ilustrada das Grandes Literaturas, Estúdios Cor, Lisboa, 1973

Ela canta, pobre ceifeira

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

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Temática abordada: a Dor de Pensar  (pensar faz sofrer).
Dialética subjacente: conflito = sentir/pensar; consciência / inconsciência.

Trata-se de um poema ainda um pouco ligado ao intersecionismo.
Este texto exemplifica o conflito entre o sentir e o pensar, ou entre a ambição da felicidade pura e a frustração que a consciência-de-si implica.
Podemos considerar dois momentos neste texto: o primeiro constituído pelas três primeiras quadras e o segundo pelas três restantes.
Nas três primeiras quadras a focalização incide sobre a ceifeira, objeto de análise do poeta, ceifeira que “Canta, e ceifa,”.
A voz da ceifeira desperta no sujeito poético sentimentos contraditórios – “Ouvi-la alegra e entristece” – que remetem para o contraste existente entre a vida pobre e dura que a mesma tem e o canto que parece alegre – “Julgando-se feliz talvez,”;  “E canta como se tivesse / Mais razões p’ra cantar que a vida”. Assim, na sua descrição da ceifeira, o sujeito poético aponta para um canto instintivamente alegre. Esta descrição seria objetiva se o s.p. não introduzisse a sua perspetiva; a subjetividade vai adensar-se de seguida, ao longo do segundo momento.
Nesta primeira parte ou momento predomina o tempo verbal Presente bem como um tipo de pontuação mais lógica, “linear”, “suave” próprias da descrição. O Presente atribui um caráter mais durativo à “ação” uma vez que projeta a voz doce da ceifeira, fazendo-a deslizar suavemente pela imaginação do poeta que nela medita.
A sugestão da lenta passagem do tempo é dada pela forma perifrástica e pelo gerúndio: “a cantar”, “está pensando”, “ondeando” e “levando-me”.
Podemos concluir que, se atendermos às razões da ceifeira, o seu canto alegra; se a virmos na perspetiva total do poeta, entristece.
O segundo momento deste poema é constituído pelas três últimas quadras o qual se encontra marcado por uma muito maior subjetividade.
Nele, o sujeito de enunciação exprime a sua emoção perante a canção inconsciente / alegre da ceifeira, tecendo considerações sobre a simplicidade da ceifeira, e, sobretudo, sobre si próprio, o que muito contribui para essa mesma subjetividade pois o objeto de análise é agora o s.p. por oposição à simplicidade da ceifeira.
Alguns aspetos a considerar: o tom é diferente; o eu poético aproxima-se da ceifeira nesse tratamento por “tu” e a pontuação passa de linear ou lógica a emotiva o que se verifica na utilização de pontos de exclamação quando o s.p. se dirige diretamente aos elementos da natureza e no emprego da forma verbal do Imperativo - “Ah, canta, canta sem razão!”; “Ah, poder ser tu, sendo eu!”; “Ó céu! / Ó campo! / Ó canção!”.
Esta segunda parte pode ser ainda dividida em dois momentos:
1º - o s.p. lança um apelo (função apelativa da linguagem) à ceifeira para que continue a cantar a sua canção inconsciente  e para que derrame “no [seu] coração”, vv.15 / 16, porque a emoção que experimentou obrigou-o a pensar e a desejar ser ela sem deixar de ser ele, tendo a sua “alegre inconsciência / E a consciência disso…”.
Deste modo, o s.p. aspira ao impossível pois ter consciência da inconsciência é deixar de ser inconsciente. Ele tem consciência desta impossibilidade e por isso apela ao céu, ao campo e à canção, personificados =conduz= “dor de pensar”.
2º - última quadra, culminar de todo o processo que leva o s.p. a desejar a dispersão, o aniquilamento.
Tendo sido um dos poetas que mais se serviu da inteligência, Pessoa sempre se sentiu torturado por ser um ser pensante. Por isso aspira à inconsciência da ceifeira quando ouve a sua “incerta voz” (alegre e triste): “Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso! …”. Deste modo, o s.p. reflete sobre a intelectualização do sentir, “O que em mim sente ‘stá pensando.”; sobre a “dor de pensar”, “A ciência / Pesa tanto e a vida é tão breve!”, desejando a inconsciência, “Tornai / Minha alma a vossa sombra leve! / Depois, levando-me, passai!” (tal como a voz da ceifeira que se espalha no ar).
A temática da fragmentação do “eu” é evidente, remetendo para a criação dos heterónimos:
“Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso!”
É algo sem solução, este problema de querer ser tu e permanecer eu e ser consciente do inconsciente; ser e não ser, consciência / inconsciência - (paradoxo).
Mesmo a própria ciência (pensamento) é fonte de sofrimento – “dor de pensar” – e até mesmo o pensamento é causa de sofrimento, v.14; por isso, o poema culmina na última quadra, como já foi referido, na expressão de um desejo que conduza a um fim uma vez que, em situação alguma, se consegue evitar o sofrimento.

**  O pensamento racional está na origem do ser incapaz de verdadeiramente sentir, sensitivamente, instintivamente, como quem descobre o mundo sem preconceitos, sem nada dele saber – “A ciência / Pesa tanto e a vida é tão breve!” – constatação amarga, reforço à dor de pensar, à lucidez.
***  Recursos estilísticos:
 Antítese – versos 4, 9, 18-19;
Dupla adjetivação – verso 4;
Comparação – versos 5, 6;
Invocação – versos 13, 15 e seguintes;
Metáfora – versos 5, 7, 15, 16;
Exclamações e verbos no imperativo – versos 13, 15-16 e seguintes;
Aspeto formal: poema composto por seis quadras em versos octossílabos. O esquema rimático de todas as quadras é ABAB e a rima é cruzada.










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