AUTOPSICOGRAFIA
(uma leitura)
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração
Fernando Pessoa
a) Poema que apresenta a
teoria-base da estética pessoana, definindo claramente os lugares do coração
(sentimento) e da inteligência na criação poética.
b) 1ª estrofe, 1º verso é a
síntese do pensamento implícito no conjunto do poema. Na 1ª quadra está
expresso o ponto de partida para a criação
poética: o reconhecimento da dor ou experiência emocional. Esta, no entanto,
não deve aparecer na sua poesia; esta dor sentida deve ser materializada e não
deve aparecer da forma espontânea com que surgiu.
c) “A dor sentida é a
realidade, o seu fingimento é a literatura.”; “O real é imaginado de forma a
exprimir-se artisticamente.”; “O fingimento da realidade já supõe que há duas
coisas distintas.” (António José Saraiva in Ser
ou Não Ser Arte)
d) São três as fases do
processo poético/literário:
· Primeira: sentir,
conhecer-se, analisar-se;
· Segunda: conceber a ideia
do fingimento desse sentir;
· Terceira: torná-la em objeto
- poema.
e) Quatro dores:
· a dor real do poeta; (a que
ele sente ou 1)
· a dor fingida / imaginada;
(a que o poeta transfigura, intelectualiza e que é a sentida ou 2)
· a dor lida; (o poeta
escreve essa dor 2, tornando-a num poema)
· a dor real do leitor (a que
é despertada no leitor pela leitura do poema e que passa assim a dor sentida
pelo mesmo. No último verso: os leitores só têm acesso à representação da dor
intelectualizada que não lhes pertence.)
f) Distinção entre o Eu
(definido) o que faço, escrevo, sinto com a imaginação e os Outros (indefinido)
o que dizem, sentem, leem, sentem com o coração.
g) “Para o poeta a dor fingida
nasce da dor sentida; para o leitor a dor sentida nasce da dor lida.”; “O
leitor sente uma dor que não é a sua.”; “A arte nasce da realidade,
desprende-se da realidade e renasce na realidade.” (António José Saraiva in Ser ou Não Ser Arte)
h) calhas de roda - rumo
marcado pelo destino (= roda da vida); mundo das convenções cujas calhas simbolizam a fixidez e a
impossibilidade de mudança de rumo.
razão - imaginação onde o
poema é inventado (dor fingida);
comboio de corda = coração;
função lúdica da poesia;
coração - sensibilidade que
origina o poema (dor real) mas que é um entretenimento da razão.
i o título do poema pode levar-nos à
conclusão de que o poeta quer explicar o processo psíquico que nele se passa,
ao elaborar um texto poético. O poeta faz um estudo do fenómeno que nele ocorre
no ato da criação artística.
ii De notar a
ligação entre as três estrofes através da coordenativa “e” e que sugere a
divisão em três partes lógicas a qual, por sua vez, aponta para uma sequência
igualmente lógica, no desenvolvimento do assunto. De referir que a última
estrofe funciona como uma conclusão do anteriormente exposto, introduzida pela
expressão “E assim…”.
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