ISTO
(uma leitura)
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
“Isto”
António
Borregana:
a) “Parece
que é uma resposta a supostas críticas nascidas de possíveis interpretações de “Autopsicografia”.
Assim e tal como no poema anterior, temos a teoria poética do fingimento.
b) “Em
“Autopsicografia”,
o poeta fala na terceira pessoa, dando a entender que a teoria exposta tem
aplicação universal (…) No poema “Isto”, o poeta fala
na primeira pessoa.”
c) 3 momentos, 3 estrofes; 1ª est. – tese do
poeta: não usa o coração, sente com a imaginação e não mente. Máxima de Álvaro
de Campos “Fingir é conhecer-se”; 2ª est. – desenvolvimento e fundamentação
filosófica da necessidade de usar a imaginação: o poeta pretende ultrapassar o
que lhe “falha ou finda” e contemplar “outra coisa”; 3ª est. – “Por
isso” se liberta do que “está ao pé” que é a verdade para aqueles que dizem que
finge ou mente tudo o que escreve, em busca daquilo que é verdadeiro e belo, “a coisa linda”.
d) O que é lindo é o poema que resulta da transfiguração, do fingimento da dor sentida
através da inteligência, da imaginação. Para Pessoa, a perfeição está no mundo
intelectual e não no mundo sensível.
e) “Tudo o que sonho ou passo
(= fatalidade, destino), / O que me falha ou finda”
(= eventualidades da vida) / É como que um terraço / Sobre
outra coisa ainda. / Essa coisa é que é linda.”; (de salientar que
nenhum dos verbos sublinhados é ativo, sugerindo o poeta como destinatário e não como sujeito destas ações). “É
evidente que paira aqui a doutrina platónica (…): olhar para as aparências (as
coisas do mundo) e ver imediatamente as realidades puras de um mundo mais
alto.”
Só o poeta pode contemplar essa coisa
tapada pelo terraço do sonho, da dor, da frustração, porque se consegue libertar do enleio do mundo e escrever
usando a imaginação/razão, em busca do que é e apenas seguro (“sério”) “do que não é”.
f) O
que está ao pé são as sensações, é o mundo das aparências; o “que
não está ao pé” é o mundo da inteligência, o mundo das realidades
puras, da imaginação que transforma, que eleva as sensações ao nível da
literatura, ao nível da poesia. A arte poética nasce da abstração do mundo
sensível. Só quando o poeta é “livre do seu enleio”
(do mundo sensível, do coração) é que pode dar-se o milagre da poesia.”
g) A
interrogação final, “em conjunto com a exclamação “Sinta quem lê!”
é uma resposta irónica ao (…) princípio do poema. O poeta não sente, deixa isso
para os que leem, para quem não é poeta.”
î Distinção entre a utilização do verbo
sentir na 1ª e última estrofe,
respetivamente:
- na 1ª estrofe, “sinto” refere-se à emoção
intelectual e não às sensações;
- na última estrofe, “Sentir” e “Sinta” referem-se às
sensações, próprias das pessoas que dizem que ele finge ou mente.
îî … e ainda:
- trata-se
de um texto de índole teórica sobre a criação poética por isso não é de
estranhar a predominância de substantivos e de verbos (Pres. Indicativo).
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