quinta-feira, 16 de novembro de 2017

ISTO de Fernando Pessoa





ISTO
(uma leitura)

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.




Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.


Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!



“Isto”
António Borregana:
a)  “Parece que é uma resposta a supostas críticas nascidas de possíveis interpretações de “Autopsicografia”. Assim e tal como no poema anterior, temos a teoria poética do fingimento.
b)  “Em “Autopsicografia”, o poeta fala na terceira pessoa, dando a entender que a teoria exposta tem aplicação universal (…) No poema “Isto”, o poeta fala na primeira pessoa.”
c)  3 momentos, 3 estrofes; 1ª est. – tese do poeta: não usa o coração, sente com a imaginação e não mente. Máxima de Álvaro de Campos “Fingir é conhecer-se”; 2ª est. – desenvolvimento e fundamentação filosófica da necessidade de usar a imaginação: o poeta pretende ultrapassar o que lhe “falha ou finda”  e contemplar “outra coisa”; 3ª est. – “Por isso” se liberta do que “está ao pé”  que é a verdade para aqueles que dizem que finge ou mente tudo o que escreve, em busca daquilo que é verdadeiro e belo, “a coisa linda”.  
d)  O que é lindo é o poema que resulta da transfiguração, do fingimento da dor sentida através da inteligência, da imaginação. Para Pessoa, a perfeição está no mundo intelectual e não no mundo sensível.
e)   “Tudo o que sonho ou passo (= fatalidade, destino), / O que me falha ou finda (= eventualidades da vida) / É como que um terraço / Sobre outra coisa ainda. / Essa coisa é que é linda.”; (de salientar que nenhum dos verbos sublinhados é ativo, sugerindo o poeta como destinatário  e não como sujeito destas ações). “É evidente que paira aqui a doutrina platónica (…): olhar para as aparências (as coisas do mundo) e ver imediatamente as realidades puras de um mundo mais alto.”
     Só o poeta pode contemplar essa coisa tapada pelo terraço do sonho, da dor, da frustração, porque se consegue  libertar do enleio do mundo e escrever usando a imaginação/razão, em busca do que é e apenas seguro (“sério”) “do que não é”.

f)   O que está ao pé são as sensações, é o mundo das aparências; o “que não está ao pé” é o mundo da inteligência, o mundo das realidades puras, da imaginação que transforma, que eleva as sensações ao nível da literatura, ao nível da poesia. A arte poética nasce da abstração do mundo sensível. Só quando o poeta é “livre do seu enleio” (do mundo sensível, do coração) é que pode dar-se o milagre da poesia.”
g)  A interrogação final, “em conjunto com a exclamação “Sinta quem lê!” é uma resposta irónica ao (…) princípio do poema. O poeta não sente, deixa isso para os que leem, para quem não é poeta.”

î Distinção entre a utilização do verbo sentir na 1ª e última estrofe, respetivamente: 
- na 1ª estrofe, “sinto” refere-se à emoção intelectual e não às sensações;
- na última estrofe, “Sentir” e “Sinta” referem-se às sensações, próprias das pessoas que dizem que ele finge ou mente.

îî … e ainda:



- trata-se de um texto de índole teórica sobre a criação poética por isso não é de estranhar a predominância de substantivos e de verbos (Pres. Indicativo).







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