Festa
e Jogo
(…) “Festa e jogo, o amor cortês realiza a
evasão para fora da ordem estabelecida e a inversão das relações naturais.
Adúltero por princípio, começa por desforrar-se das servidões matrimoniais. Na
sociedade feudal, o casamento visava aumentar a glória e a riqueza duma casa.
O negócio era tratado friamente, sem curar dos impulsos de coração, pelos mais
velhos das duas linhagens. Estes fixavam as condições da troca, da aquisição
da esposa, que devia tornar-se, para o futuro senhor, guardiã da sua morada, ama
dos seus criados e mãe dos seus filhos. Era preciso sobretudo que fosse rica,
de boa estirpe e fiel. As leis sociais ameaçavam com as piores sanções a esposa
adúltera e aquele que tentasse desviá-la. Mas concediam toda a liberdade aos
homens. Complacentes, damas não casadas oferecem-se em cada castelo aos
cavaleiros andantes das narrativas corteses. O amor cortês não foi portanto simples
divagação sexual. E eleição. Realiza a escolha que o processo dos esponsais
proibia. No entanto, o amante não escolhe uma virgem, mas a mulher de outro.
Não a toma por força, conquista-a. Perigosamente. Vence pouco a pouco as suas
resistências. Espera que ela se renda, que lhe ceda os seus favores. Para esta
conquista desenvolve uma estratégia minuciosa, que aparece de facto como uma
transposição ritualizada das técnicas da caçada, da justa, do assalto das
fortalezas. Os mitos da perseguição amorosa decorrem como cavalgadas na
floresta. A dama eleita é uma torre cercada.
Mas esta estratégia coloca o cavaleiro em posição de
servidão. O amor cortês inverte, ainda aqui, as relações normais. No real da
vida, o senhor domina inteiramente a esposa. No jogo amoroso, serve a dama,
inclina-se perante os seus caprichos, submete-se às provas que ela decide
impor-lhe. Vive ajoelhado diante dela, e nesta postura de devotamento se
encontram desta vez traduzidas as atitudes que, na sociedade dos guerreiros,
regulavam a subordinação do vassalo ao seu senhor. Todo o vocabulário e todos
os gestos da vida cortês saem das fórmulas e dos ritos da vassalidade. Em
primeiro lugar, a própria noção de serviço e o seu conteúdo. Como o vassalo
para com o senhor, o amante deve ser leal para com a dama. Empenhou a sua fé,
não pode traí-la, e este laço não é daqueles que se desatam. Mostra-se valente,
combate por ela, e são as vitórias sucessivas das suas armas que o fazem
avançar nos seus caminhos. Finalmente, deve rodeá-la de atenção. Faz-lhe a corte,
o que quer dizer que a serve ainda, tal como os vassalos reunidos em corte
feudal em redor do seu senhor. Mas, como o vassalo, o amante entende que por
esse serviço obterá um dia recompensa e ganhará sucessivos dons. (…)
O amor cortês continuou a ser um jogo, um divertimento
secreto. Vive de piscadelas de olho cúmplices. Discreto, dissimula-se sob
aparências enganadoras. Mascara-se sob o esoterismo do trobar clus, dos gestos
simbólicos, das divisas de duplo sentido, duma linguagem que só os iniciados
sabem decifrar. Por essência, e nas formas que exprime, é todo ele fuga para
fora do real, como a festa. E um intermédio apaixonante, mas de total
gratuidade, que não compromete o fundo da pessoa."
GEORGES DUBY, O Tempo das Catedrais
(1979), pp. 252-253
Sem comentários:
Enviar um comentário
COMENTE, SUGIRA, PERGUNTE, OPINE...