terça-feira, 19 de janeiro de 2016

CESÁRIO VERDE: "HUMILHAÇÕES"



Humilhações
De todo o coração – a Silva Pinto

Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Jó,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.

Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.

Na representação dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.

Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.

Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia
De vê-la aproximar, sentado na plateia,
De tê-la num binóculo mordaz!

Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
— Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fora as ovações.

Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espetáculos do Som.

Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir, direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me abater.
Fim da 1ª parte
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Saí: mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
— Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...
Fim da 2ª parte
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Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'

Quanto à estrutura interna, podemos delimitar dois momentos ou partes lógicas neste texto: a primeira, constituída pelas oito primeiras estrofes e a segunda, pelas duas últimas.
Na primeira parte ou momento, o sujeito poético encontra-se no átrio de um teatro, aguardando a chegada da bela burguesa que o fascina. Este não possui dinheiro para assistir ao espetáculo por isso limita-se a observar a chegada da mulher e a sua entrada no teatro.
Na segunda parte, o “eu” abandona o teatro e depara-se com um tumulto na rua. Decide enfrentar os agressores mas uma das vítimas distrai-o, fazendo-lhe ver que é inútil resistir.
A mulher é caracterizada como alguém que não gosta de pobres Esta aborrece quem é pobre.. Trata-se de uma mulher burguesa, rica, superior, distante e altiva por contraste com o sujeito poético que vive uma obsessão por ela. Separam-nos a condição social e, naturalmente, o dinheiro.
O sujeito poético, “quase Jó,” “ ignorado e só”, deixa-se humilhar por esta mulher que o ignora, por quem se sente deslumbrado e embora saiba que ela lhe está inacessível. Está –lhe vedada igualmente a possibilidade de entrar no teatro pois não tinha dinheiro, Ó minha pobre bolsa, Eu ocultava o fraque usado nos botões; e ainda que a sua vontade se resumisse a observá-la com um binóculo, amortalhou-se a ideia / De vê-la aproximar, (…) / De tê-la num binóculo mordaz!.
No verso E ouviam-se cá fora as ovações. temos a indicação de que, efetivamente, o “eu” se encontra no exterior ou, pelo menos, no hall do teatro, facto que virá a ser confirmado no primeiro verso da segunda parte Saí: mas ao sair senti-me atropelar.. No exterior, o sujeito poético depara-se com um tumulto em que a guarda a cavalo agride populares e ele irado, decide enfrentá-la. Entretanto, é interrompido por uma velhinha suja que lhe pede um cigarro e que o olha com olhos de coruja… a referência à idade e aos olhos (perspicácia) fazem crer tratar-se de alguém com experiência e que, ao desviar a atenção do “eu” do tumulto, pretenderá talvez dizer-lhe que qualquer esforço ou reação àquela situação, será inútil. A velhinha representa o povo comum oprimido pelos poderosos (guarda).
A temática da Humilhação / Opressão surge neste texto abrangendo duas áreas: a da experimentada pelo sujeito poético e proveniente da mulher burguesa que tanto o fascina e a desencadeada pela injustiça de ordem social. Deste modo, o Desdém / Ódio / Opressão exercidos pela burguesa altiva provocarão a Humilhação / Aceitação / Idolatria do sujeito poético enquanto que o poder exercido pela guarda darão lugar a uma outra forma de Humilhação vivida pelo Povo na figura da velhinha suja e que tomam a forma da Resignação.
Alguns recursos estilísticos:
A metáfora: “cansa-me o ranger da seda”; “amortalhou-se a ideia”.;
A hipérbole: “As damas, (…), gemem nos espartilhos,”;
A adjetivação expressiva: “fanhosa, infecta, rota, má,”;
A apóstrofe: “E, muito embora tu, burguês, me não entendas,”;
A hipálage: “binóculo mordaz!”










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