terça-feira, 19 de janeiro de 2016

CESÁRIO VERDE: "CONTRARIEDADES"



Contrariedades

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa de um jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a reclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!
Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'


            Neste texto são duas as temáticas a considerar, a questão social e a humilhação de que o sujeito e a engomadeira são vítimas.
            O poeta coloca-se ao lado dos desfavorecidos, vítimas da opressão social da sociedade e denuncia as situações sociais injustas, por exemplo, no retrato da engomadeira.
O poeta começa por revelar o seu estado emocional. O primeiro verso resume o que depois será desenvolvido (consciência do “eu”, distanciação). Este primeiro verso é quase um desabafo e faz-nos antever que a realidade que nos vai ser oferecida será condicionada por fatores físicos e psicológicos (frenesi; agitação; ansiedade; dor de cabeça; impaciência Já fumei três maços de cigarros/
Consecutivamente.
).
Além de desabafo, este primeiro verso funciona como um “aviso prévio” do que virá a seguir e que detém a atenção do poeta: a descrição de uma sociedade corrupta, injusta e decadente que se encontra representada pela redação do jornal que rejeitou os seus poemas e pela vizinha tísica.
*** Podemos então concluir que o tema do poema é a crítica a uma sociedade alienada e desumana. Esta crítica faz-se através da denúncia de atitudes que muito ferem a sensibilidade do “eu”:
-  o abandono dos doentes (engomadeira);
- o abandono dos poetas (simbolizado pela recusa da publicação dos seus versos).
**  poeta / engomadeira: paralelismo das duas situações:
# ambos trabalham curvados, um sobre a secretária, outro sobre a tábua;
# ambos sentem dificuldade em respirar, ele porque fuma exageradamente, ela devido às brasas do ferro de engomar;
# ela tem dor de cabeça resultante dos cigarros e das “contrariedades”, ela asfixia em resultado da doença e da combustão do ferro;
# ele abafa uns desesperos mudos; ela Sofre de faltas de ar;
# ele vê recusados os seus poemas; a ela O doutor deixou-a. (…) / Mal ganha para sopas...   
TEMÁTICA
- Humilhação
            - estética, porque vê a sua produção poética posta em causa e incompreensão relativamente à mesma;
            - social, centrada na situação da engomadeira, abandonada por todos e que tem de trabalhar para sobreviver.

** no entanto, ele ainda poderia aceitar os valores sociais ou interesses literários mas ela, nem isso.
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            ! Há em Cesário Verde, a preocupação de aliar as questões sociais realistas ao aperfeiçoamento poético, característica do parnasianismo.
            ! Os limites sufocantes da cidade são também identificados com os próprios limites dos padrões sociais e artísticos da burguesia sendo que a cidade representa também um conjunto de normas às quais o sujeito poético não admite vergar-se.
            ! Título = o “eu” contrariado, sugerindo as tensões / contradições de um poeta que se debate entre dois desejos contrários: a aspiração a uma felicidade literária e a necessidade de escapar aos padrões que lhe são impostos.
            Cesário não abdica dos temas / formas invulgares na poesia e situa-se ao lado do povo por oposição aos outros que o rodeiam.
            ! Os que controlam a imprensa estão ao mesmo nível da mulher citadina de Deslumbramentos pois são ambos consequências da moda – na roupa ou nas ideias – ambos produtos artificiais da cidade.

Há quem veja em Cesário Verde um “lírico realista” devido ao “quotidiano citadino e burguês da sua poesia”. Jacinto do  Prado Coelho acentua a sua proximidade do Naturalismo pela pretensão de objetividade e pela fidelidade à “estética do positivo e do sincero”, com alusões “ a Balzac, a Taine e a Spencer “, com um vocabulário “cheio de termos concretos, alguns deles técnicos ou de linguagem familiar, e com uso abundante de adjetivos”, “ para dar o contorno exato dos homens e das coisas”.
adaptado

           




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