Louvor de Garrett
Há coisas que o meio ambiente,
o tempo histórico, o local onde estudamos nos dão
e que nos marcam para sempre.
(...)
Entre as muitas coisas novas e diferentes que então se praticavam no Pedro Nunes¹, havia um grupo de teatro (…) no qual, talvez a partir de 1963, participei activamente. Aí fui escudeiro na Farsa de Inês Pereira, aí li Tchekhoy² pela primeira vez, aí disse poemas de Musset ³ (…), aí fiz um papel em O Alfageme de Santarém. (4) (...)
Aí - ou nas aulas de Português, mas é natural que ambas
as experiências, a teatral e a literária,
se tenham complementado - devo ter caído na "poção mágica" do Romeiro de Frei Luís de Sousa. Li o texto pela primeira vez quando tinha 13 ou 14 anos - e ainda não me refiz do fascínio inicial, aumentado pelas muitas
releituras, não sei quantas representações teatrais, filmes e telefilmes. Aquele Romeiro, aquela "ameaça" à
normalidade feliz do triângulo Maria-Madalena-Manuel de Sousa
Coutinho, foi para mim uma fonte de mistério,
o sinal de uma coisa que mais tarde, muito mais tarde,
reconheceria como "desassossego" (...).
De forma evidentemente não consciente,
o que o "Ninguém" do Romeiro me deixava entrever é que, para lá do dito,
do explícito, havia - há - no texto literário um amplo espaço de indeterminação,
o espaço do mistério,
de um segredo que nos cabe adivinhar ou (o que é ainda melhor) simplesmente reconhecer.
(...)
Quer dizer que, naquela indecisão histórica que a figura do Romeiro vem transformar em autêntica tragédia, eu pressentia
a vibração de uma outra literatura, uma literatura que não se esgotava na aparência da sua imaginária "perfeição", porque os textos literários nos eram dados como coisas finais, definitivas. Ora, o Frei Luís de Sousa foi, para mim, nessa altura, o primeiro texto "aberto" que me era dado ler: o "suspense", a emoção, o desconcerto, o excesso emocional, tudo estava lá, ou, pelo menos, tudo eu imaginava lá figurar.
Leio o Frei Luís de Sousa antecipando sempre aquele momento catártico (5) já prenunciado por mil e um sinais, mas adivinhado com a mesma excitação com que somos capazes de antecipar uma sequência já conhecida de um filme visto e amado mais de
uma vez (...).
Dorme Maria, no delírio que a febre e os seus sonhos de grandeza alimentam? E Telmo conforta-se na sua apegada ternura pela menina, como se
a pureza que ela lhe entrega limpasse a recordação de uma qualquer culpa passada? E Dona Madalena, quem pode dizer, entre os sustos cheios de presságio de Maria e as meias palavras de Telmo, que realmente sossega nos braços de Manuel de Sousa? E Manuel de Sousa, quem aquieta
esta extenuante vontade de acção, que o leva de
Lisboa à outra margem, uma vez e outra e outra?
O espaço de representação de Frei Luís de Sousa é atravessado por um vendaval permanente: ninguém está bem naquele lugar, ninguém está bem no seu papel e, por isso, Manuel de Sousa acaba por incendiar aquela casa, como se com isso quisesse exorcizar pelo fogo a causa de toda a inquietude.
(...)
Frei Luís de Sousa é o livro do desassossego português, antes de ser drama histórico, narrativa amorosa ou tragédia sebastianista. Todas as personagens vivem um mal-estar, cuja causa difusa, corporizada no fantasma de D. João de Portugal, é, afinal de contas,
"ninguém". E qual de nós pode dizer que nunca se sentiu, ainda que por instantes, prisioneiro deste desejo de não ser, neste momento em que existe? "Eu só estou bem onde não estou",
lembram-se? E é preciso ler Frei Luís de Sousa em voz alta, para ouvir o eco que o silêncio entre as palavras nos envia
- ou a música que faria
da obra-prima de Garrett a ópera portuguesa por excelência.
Sei hoje - e sei dizê-lo - porque é que o Frei Luís de Sousa foi tão importante para mim:
a partir daí, a literatura passou a ser, aos meus olhos,
o terreno onde se
desenhava o risco dos limites e a experiência do indivisível.
Com Garrett
comecei a aprender o que quer dizer,
literariamente, ser moderno.
António
Mega-Ferreira, in Público,
8 de Fevereiro de 1999
(texto adaptado e com supressões)
1. Pedro Nunes: nome de
uma Escola Secundária, em Lisboa.
2.Tchekhov: escritor russo que se
notabilizou sobretudo como dramaturgo (1860-1904).
3. Musset: escritor romântico francês (1810-1857).
4. O
Alfageme de Santarém: peça de Almeida Garrett.
5. momento catártico: momento que provoca
uma espécie de purificação emocional (catarse).
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