TEXTO
INICIAL…
A
melhor proposta para a explicação da heteronímia é-nos dada pelo próprio F.
Pessoa quando escreveu “o ponto central da minha personalidade como artista é
que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a
exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro – eis
tudo.”
Na
verdade, o poeta tem a capacidade de ”voar outro”, ou seja, é capaz de
construir pessoas inexistentes que sentem, como as pessoas reais, sensações e
emoções ainda que diferentes das do seu criador. Este processo assemelha-se ao
do ator quando representa as suas personagens, estando na sua origem a
capacidade de se despersonalizar.
Pessoa
transforma esta despersonalização dramática num modo de criação literária muito
bem conseguido, em que cada personagem difere do seu criador, representando uma
espécie de drama. Quando estão juntas, estas personagens formam um outro tipo
de drama: o drama em gente.
NOTAS SOLTAS…
É o profundo autoconhecimento de
Pessoa que o leva a desejar ser outro, “Ser outro constantemente” revelando o
“eu” fragmentado e revelando o drama de personalidade que o leva à dispersão do
real e de si mesmo.
O poeta possui uma grande capacidade
de despersonalização “Quantos sou?” e é na heteronímia – cria diferentes
personalidades – que Pessoa encontra a possibilidade de exprimir estados de
alma e consciência distintos.
Este processo de despersonalização
faz dele um ser plural, em que pensar e sentir se harmonizam e assim melhor
expressarem a apreensão da vida, do ser e do mundo, permitindo “sentir tudo de
todas as maneiras”.
“’Por
a alma não ter raízes’, Fernando Pessoa
pretende “viajar” no seu próprio ser, submetendo-se ao processo de outração, de modo a experienciar todas
as possibilidades do “eu”. Indivíduo singular, Pessoa apresenta-se “múltiplo”,
querendo exprimir o todo e abarcar a totalidade. É a fragmentação que lhe permite,
então, ser “variamente outro” e alcançar a unidade.”
A
fragmentação do “eu” pessoano resulta da constante procura de respostas para o
enigma do ser, aliada à perda de identidade.
Pessoa
vê-se confrontado com a sua pluralidade, ou seja, com diferentes “eu”, sem
saber quem é nem se realmente existe. O “eu” nega-se como um todo.
Refere
o “eu” lírico “Multipliquei-me, para me sentir”, encontrando, assim, a salvação
na fragmentação, na vida inventada, em que cada um dos seus heterónimos exprime
um novo modo de ser e uma visão própria do mundo.
Despersonalizando-se,
o ”eu” desaparece, fazendo surgir a persona,
isto é, a máscara.
No
interior do poeta encontram-se vários “eu”. Enquanto ser múltiplo, Pessoa não
consegue encontrar-se nem definir-se em nenhum deles, sendo incapaz de se
reconhecer a si próprio – é um mero observador de si mesmo. Sofre a vida sendo
incapaz de a viver.
No
poema “Não sei quantas almas tenho”, o sujeito poético confessa a sua
fragmentação em múltiplos “eu”, revelando a sua dor de pensar e a intelectualização do sentir.
É esta última que o conduz através de um processo constante de autoanálise. Em
dúvida e indefinido quanto à sua identidade, angustiado pelo autoconhecimento –
“Por isso, alheio, vou lendo / como páginas meu ser” – é incapaz de viver a
vida, mergulhando no tédio e na angústia existenciais.
Será
através da fragmentação do “eu” que Fernando Pessoa tenta encontrar a
totalidade de forma a conciliar o ato de pensar e o do sentir.
Sem comentários:
Enviar um comentário
COMENTE, SUGIRA, PERGUNTE, OPINE...